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Uma História de inflamáveis sugestões

  • há 7 dias
  • 11 min de leitura

por Larissa Muniz


Texto sobre Senhoritas em Uniforme (1931), Beijos de Nitrato (1992) e The Watermelon Woman (1996).


O que quer que tivéssemos perdido, possuíamos juntas

o precioso, incomunicável passado. [1]

– Willa Cather, My Ántonia (1918)


Willa Cather (1873-1947), escritora norte-americana, teria queimado muitas de suas cartas antes de morrer. Willa, ou Will, como também gostava de ser chamada quando adotava roupas masculinas, queria ser conhecida pelo seu trabalho e não pela maneira como vivia. Ela viveu por quase 40 anos com sua companheira e colaboradora, Edith Lewis. As cartas que Willa queimou poderiam ser cartas de amor – fragmentos que dariam algumas pistas sobre como essas mulheres se relacionavam no início do século XX nos EUA. 


Por que Willa se preocupava tanto sobre como seria vista depois de sua morte? Se em vida ela assumiu um relacionamento com outra mulher, ainda que de forma discreta, por que não poderia deixar registros de sua sexualidade? Esse desejo de controle sobre a própria narrativa é compreensível, mas também revela um dilema que parece comum a figuras lésbicas,  muitas das quais talvez nunca saibamos o nome: a necessidade de escolher entre uma biografia honesta ou um legado que vai ficar para a História. 


Quando Barbara Hammer decide revisitar o caso da escritora em Beijos de Nitrato (Nitrate Kisses, EUA, 1992), ela expõe o silêncio absoluto dos arquivos lésbicos. Nas raras brechas onde poderiam haver vestígios concretos de vidas e figuras queer, restam apenas cinzas – indícios de apagamentos deliberados de uma história. Hammer recupera esses rastros e escolhe trazê-los à superfície como narrativas dignas de serem escavadas, cuidadas, recuperadas e expostas no cinema. Não à toa, ela entende que seu filme demanda uma espectatorialidade ativa: precisamos descobrir os arquivos junto à própria diretora, decidindo as associações, períodos e contextos das imagens. “As pessoas da audiência se tornam arqueólogas e historiadoras!”, escreve a cineasta em sua autobiografia (2010, p. 233). 


Tal desejo por uma prática historiográfica ativa ecoa nesta edição da mostra “Clássicas: Insubmissas Mulheres de Cinema”, que propõe um percurso rebelde ao cinema de mulheres mundial. Em meio a uma programação que reúne 34 obras de 14 países, sob o desafio de escrever sobre a lesbiandade, uma perspectiva tão diversa quanto o próprio cinema feminista, escolhi destacar uma tríade que transita da mera sugestão de uma relações entre mulheres para uma intervenção explícita na história: além do já mencionado Beijos de Nitrato, Senhoritas em Uniforme (Mädchen in Uniform, Leontine Sagan e Carl Froelich, Alemanha, 1931) e The Watermelon Woman (Cheryl Dunye, EUA, 1996). Cada um à sua maneira, esses filmes dialogam com uma questão central da representação lésbica no cinema: como contar uma história que se desfaz antes mesmo de ser escrita? 


Os filmes destacados apostam no poder da sugestão para tentar responder essa pergunta. A palavra “sugestão” carrega, em sua origem latina, significados como “construir, suprir, dar uma pista”. Sugerir algo implica criar uma abertura interpretativa que exige a participação de outra pessoa para ser plenamente realizada. Não existe sugestão sem algum tipo de diálogo. Por outro lado, há maneiras sutis de operá-la, de forma que atue nas entrelinhas, por baixo dos tapetes. Na ausência de registros lésbicos explícitos – seja por censura, seja por descaso, seja por destruição planejada –, a sugestão se torna uma ferramenta de disputa pelas imagens que restaram.


À espera de um beijo de boa noite

Em um internato só para meninas na Alemanha do início do século XX, as alunas são educadas para se tornarem mães de soldados. Um grupo de adolescentes espera pelo “boa noite” da jovem professora Srta. von Bernburg. “Toda garota recebe um beijo”, sussurra a estudante Ilse para Manuela, a novata do colégio. As garotas se ajoelham nas camas e aguardam pela sua vez. Primeiros planos duram em seus rostos ingênuos e ansiosos. Manuela assiste à cena encantada, como se um novo mundo se mostrasse na sua frente. Filha de um militar, a jovem de 14 anos foi enviada à escola contra sua vontade e perdeu a mãe muito cedo. Nesse contexto de disciplina, repressão e ordem, a vida de repente parece possível quando Srta. von Bernburg dá um beijo na testa de cada uma das carentes meninas da escola. Com Manuela, no entanto, a cena é um pouco diferente: a professora a beija na boca.


Não há qualquer escândalo envolvido no beijo. Logo no início do filme, as alunas do dormitório abordam Manuela e a advertem: “cuidado para não se apaixonar pela Srta. von Bernburg”. A declaração não tem qualquer tom de ameaça ou reprovação – a paixão pela professora é algo natural e inevitável, um sentimento corriqueiro num espaço exclusivamente feminino. Todas as meninas anseiam pela atenção e pelo toque de Bernburg, que alimenta o afeto e a confiança entre elas, de forma que se sintam seguras no ambiente hostil da escola. Bernburg desenvolve com Manuela uma relação especial que, se em alguns momentos tem um tom de acolhimento à menina vulnerável, em outros deixa escapar sentimentos sugestivos, como quando ela declara que a adolescente está constantemente em seus pensamentos. Enquanto a rigidez da diretora autoritária do colégio não se impõe, o carinho entre professora e alunas parece inofensivo.


A juventude e inocência atravessam a narrativa de maneira ambígua. O desejo insinuado em cena pode ser justificado pela falta de experiência das estudantes ou pela busca por figuras maternas, como a própria Bernburg declara. No entanto, as imagens atestam um desejo que circula livremente entre as garotas, com uma coleção de pequenos gestos, toques e olhares os quais marcam uma atração que vai além da força central da bela professora. Fora dos olhares autoritários, as adolescente se abraçam, revelam confidências e até se enviam cartas de amor; no vestiário, trocam de roupa e se arrumam com intimidade, enquanto espiam os corpos umas das outras. A sexualidade não é colocada como um tabu que deve ser evitado, mas sim como uma curiosidade naturalmente explorada pelas meninas. O filme registra esses anseios inocentes com delicadeza, em planos fechados que isolam o entorno repressivo do colégio para focar nos olhares e expressões românticas das adolescentes.


Esse frágil equilíbrio se desfaz quando Manuela, embriagada durante a estreia de uma peça teatral da escola, declara publicamente seu amor por Bernburg. Sua espontaneidade é punida com brutalidade: a diretora proíbe alunas e professoras de lhe dirigirem a palavra, num isolamento silencioso. Bernburg, por sua vez, é forçada a cortar qualquer expectativa da adolescente: "Você não tem permissão para me amar dessa forma". A dureza de suas palavras destroça Manuela, que vagueia sem rumo pelo internato até alcançar o topo da escadaria e tentar se lançar do alto. O gesto desesperado é interrompido por suas colegas, que rompem a imposição da diretora fascista e a encontram a tempo de evitar uma tragédia.


O militarismo que domina o internato e reprime o desejo, marcado pela vigilância e pela disciplina rígida, antecipa a repressão e censura que logo se instauraria na Alemanha. O filme foi produzido nos últimos anos da República de Weimar (1919-1933), num período de efervescência cultural e maior liberdade para debates sobre gênero e sexualidade, especialmente em cidades como Berlim, que se tornou um centro de manifestações queer. No entanto, essa abertura foi progressivamente sufocada com o crescimento do nazismo, que em 1933 chegou ao poder. Um raro testemunho da presença lésbica no cinema, Senhoritas em Uniforme foi rapidamente banido e teve suas cópias queimadas – e só sobreviveu ao regime porque havia sido distribuído internacionalmente e uma das cópias fora do país foi preservada.



Por uma genealogia queer

Eu tenho 53 anos e fiz meu primeiro filme quando tinha 30. Tenho consciência que 23 anos do meu trabalho, que inclui 50 filmes, 20 vídeos e múltiplas performances, poderiam ser perdidos no processo histórico. Algumas pessoas – críticos, escritores e programadores de filmes – controlam o que é visto e o que é repercutido (trad. livre). – Barbara Hammer (2010, p. 231)


Barbara Hammer, diretora experimental estadunidense, reuniu em sua obra um esforço de representar o que nunca tinha visto antes de iniciar sua carreira no cinema. Foi nesse mesmo período, ao começar a fazer filmes e frequentar grupos de mulheres, que ela se entendeu lésbica e deu início à sua militância feminista. Em sua autobiografia Hammer! Making Movies Out of Sex and Life (2010), a cineasta descreve o momento em que percebeu a possibilidade de amar mulheres como um elemento novo entrando em seu mundo.


Hammer não hesitou em assumir seu desejo e fez de seu cinema um registro declarado: amar mulheres é algo concreto que faz parte da História. Dyketatics (ou Táticas sapatonas, em livre tradução, 1974), é apontado como o primeiro filme com cenas de sexo lésbico dirigido por uma lésbica. De forma inicialmente intuitiva, talvez, Hammer entendeu que, em meio à sua criação católica e provinciana nos anos 1940, ela nunca tinha considerado sua sexualidade porque as lésbicas são escondidas do mundo e da História. É necessário um esforço para apagar todo um grupo da memória coletiva, e Hammer decidiu investir no esforço contrário – produzir arquivos para permanecer na História.


Beijos de Nitrato (1992) pode ser considerada uma obra aglutinadora de toda sua filmografia. O próprio título do filme condensa a materialidade de seu trabalho, colado no desejo. O nitrato de celulose foi o principal material usado na base das películas de cinema desde o final do século XIX até meados do século XX. Altamente inflamável, ele representava um grande risco para os cinemas e para a preservação dos arquivos. Muitos filmes da era do cinema mudo e do início do sonoro foram perdidos devido a incêndios ou à deterioração desse material ao longo do tempo. Hammer faz uma referência direta a esse passado: o nitrato evoca a fragilidade e a combustibilidade das imagens, bem como o desaparecimento de registros cinematográficos, especialmente aqueles relacionados a histórias marginalizadas. O filme lida com essa questão da perda e da tentativa de reconstrução, sugerindo que a história queer no cinema também é feita de ausências e lacunas. Mais do que contar o que aconteceu, Hammer indaga: por que não sabemos?


Nesse cenário, a cineasta tenta traçar uma espécie de genealogia queer, criada a partir das brechas da História oficial. Para Michel Foucault, citado por Hammer no filme, a genealogia é um método de análise histórica que investiga como discursos, instituições e práticas foram formados ao longo do tempo. Em vez de buscar uma origem única ou linear, a genealogia foucaultiana analisa descontinuidades, rupturas e disputas de poder que moldam os saberes e as subjetividades. Hammer se apropria dessa definição para criar uma genealogia própria, baseada em seu método cinematográfico de escavar imagens e montá-las de forma descontinuada.


A cineasta reúne uma variedade de arquivos – capas de revistas, filmes, películas antigas, biografias, entrevistas sonoras e registros próprios – para construir um discurso declaradamente lésbico, que não apenas expõe os apagamentos das existências queer, como também sugere novos percursos para a História (das imagens e além delas). Nesse processo, algumas personagens que desafiam as normativas oficiais tornam-se centrais ao filme, como um casal de mulheres idosas, um casal interracial de homens gays e um casal punk que desafia normas de gênero. A partir desses três grupos, Beijos de Nitrato articula uma montagem que entrelaça discursos sobre a cultura queer, a censura no cinema e o apagamento contínuo das lésbicas. Ao combinar arquivos que permitem múltiplas interpretações, Hammer aposta na sugestão: ela insere fragmentos de teorias, entrevistas e imagens não identificadas para elaborar diferentes distorções, desejos e práticas da representação lésbica ao longo da História.


O corpo é central no argumento de Hammer, o qual se torna também um arquivo vivo e contemporâneo que preserva memórias. A pele flácida, as rugas e as manchas da velhice não são ocultadas, mas exibidas em sua beleza, como algo que dá tesão entre duas mulheres velhas que transam explicitamente. Da mesma forma, o sexo entre um homem negro e um homem branco é filmado com naturalidade – o contraste entre suas peles é ressaltado como algo belo e sensual, em oposição à ideia de tabu imposta pelo Código Hays (vigente entre 1930 e 1968), cuja proibição à representação de relacionamentos interraciais no cinema norte-americano aparece sobreposta na tela. Assim, as texturas únicas de cada corpo são registradas como prova da existência dessas pessoas dentro da comunidade LGBTQIAPN+, reafirmando seus desejos e práticas, ainda que frequentemente silenciadas, até mesmo no interior do próprio movimento queer.



Quando o arquivo não é suficiente

Fae Richards foi uma atriz e cantora negra e lésbica norte-americana dos anos 1930. Ela interpretou papéis estereotipados da época, como a mammy – a empregada negra bondosa –, e se envolveu com uma diretora de cinema branca, Martha Page. Richards abandonou esses papéis e passou a atuar em produções autorais do cinema negro. Além disso, cantava em clubes frequentados por sapatonas. Em determinado momento, deixou de performar no cinema e na música, possivelmente por falta de oportunidades. Anos depois, conheceu sua companheira, June Walker, com quem viveu até o fim da vida.


Essa é a história que Cheryl Dunye, cineasta negra lésbica, decide fabular em The Watermelon Woman, longa-metragem de ficção de 1996. No filme, a própria Dunye interpreta Cheryl, uma jovem de 25 anos que trabalha numa locadora e quer dirigir filmes. Ela fica obcecada por uma atriz negra dos anos 1930, conhecida como “Watermelon woman” (ou “Mulher Melancia”), e decide fazer um documentário sobre sua vida. Durante sua pesquisa, descobre que a atriz se chamava Fae Richards. Enquanto avança no projeto, Cheryl inicia um relacionamento com Diana, uma mulher branca, e se vê cada vez mais envolvida na busca pela biografia de Fae. Aos poucos, as trajetórias da cineasta e da atriz se entrelaçam, e Cheryl se perde entre o passado enigmático de Richards e as escolhas que precisa fazer no presente.


A construção visual da narrativa reforça essa sobreposição entre ficção e realidade. As imagens de Fae simulam um arquivo autêntico dos anos 1930, com trechos de filmes, fotografias antigas e depoimentos captados por Cheryl com sua câmera de vídeo. A personagem também quebra a quarta parede, usando a câmera para desabafar sobre sua vida e as dificuldades em encontrar informações sobre a atriz. Já as cenas do cotidiano de Cheryl – seu trabalho na locadora, os conflitos com sua amiga Tamara e o romance com Diana – são filmadas como uma narrativa ficcional em terceira pessoa. A diferença de textura entre o vídeo e o cinema gera um constante jogo entre passado e presente, documentário e encenação.


À medida que sua pesquisa avança, Cheryl passa a brincar mais com sua própria representação, inserindo performances autorais em meio aos materiais do documentário. Ela imita a interpretação da mammy de Fae e faz pequenas danças humoradas para a câmera. Essas breves intervenções parecem uma tentativa da cineasta de inscrever seu corpo e memória na película, como se performasse para o futuro de seu cinema. O filme, que transita entre comédia e drama, ganha contornos de um manifesto: o cinema falha em dar visibilidade às experiências lésbicas e negras. Dunye, então, decide criar sua própria referência. Se Fae Richards poderia ter existido, em The Watermelon Woman, ela existe. Cheryl (a personagem e a cineasta) queria tanto uma referência na História do cinema para conseguir criar seus próprios filmes que se dá de presente a ficção de Fae Richards.


Quando o arquivo não é suficiente, ou os meios de acessá-lo são impossíveis para uma cineasta independente, a ficção emerge como uma ferramenta para criar mundos – passados e futuros – possíveis. As fotografias de Fae, produzidas por Zoe Leonard para o filme, foram exibidas em galerias e transformadas em um fotolivro. [2] Graças a The Watermelon Woman, há hoje um acervo de 78 fotos de uma atriz e cantora negra e lésbica dos anos 1930 – uma figura inventada, mas que dá forma a muitas atrizes negras esquecidas por Hollywood. Muitas delas sequer eram creditadas nos filmes em que atuavam, limitadas a papéis de empregadas ou pessoas escravizadas. Dunye transforma a ausência do arquivo em motor para a criação: se a história não deixou rastros, então é preciso fabricá-los, criar novos mitos e legados que possam servir de inspiração para as gerações queer do futuro.


Dunye, assim como Leontine Sagan e Barbara Hammer, escolhe olhar para o cinema como uma possibilidade de negociação lésbica, de modo a dar visibilidade a uma história que parecia esquecida ou relegada às ruínas. Entre sugestões sutis e reconstruções inventadas, Senhoritas em Uniforme, Beijos de Nitrato e The Watermelon Woman atestam que a figuração lésbica no cinema não se apresenta de forma linear, mas fragmentada, feita de rastros e lacunas. Se os arquivos oficiais falham em registrar essas existências, o cinema se torna um espaço onde elas podem ser reinscritas, seja ao sugerir afetos proibidos, ao escavar vestígios ocultos ou ao criar novas narrativas que desafiam a ausência. Em um contexto onde essas imagens são frequentemente destruídas ou negadas, os filmes insistem em afirmar uma presença, de modo que a lesbiandade pode até ser invisibilizada na História, mas jamais deixará de existir – afinal, entre os escombros dos arquivos, há infinitas possibilidades de inflamáveis sugestões.


 

[1] Original: "Whatever we had missed, we possessed together the precious, the incommunicable past" (tradução livre)


[2] The Fae Richards Photo Archive (1996). Disponível em: https://archive.org/details/fae-richard/page/n3/mode/2up. Acesso em: 24 mar. 2024.


 

Referências

CATHER, Willa. My Ántonia. Boston: Houghton Mifflin, 1918.

HAMMER, Barbara. HAMMER! Making Movies Out of Sex and Life. New York: The Feminist Press at CUNY, 2010.

LEONARD, Zoe; DUNYE, Cheryl. The Fae Richards Photo Archive. New York: Artspace Books, 1996.

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