A concha dos caracóis é uma proteção, uma casa para onde podem recorrer quando se sentem ameaçados. O molusco não tem audição e se movimenta principalmente a partir dos sentidos do tato e do olfato. O corpo da criatura, assim, é completamente sensível ao mundo. Sua pele mucosa o coloca intuitivamente em movimento, encostando o tempo todo no seu próximo destino – a terra, as plantas, um concreto que por acaso entre em seu caminho; ou até um ser humano que entre em seu ambiente natural.
Caracol, de Giulia Puntel de Souza (2024), carrega toda essa pulsão sensorial do molusco – que, na verdade, está implicada em qualquer forma de vida que habita o mundo. Seu universo animado, feito inteiramente por suas mãos, é uma psicodelia vibrante, que pressupõe a interação conjunta e inerente de tudo que está no mundo: as criaturas, os ambientes, os elementos da Terra, a divisão entre eu e você. No filme, cada coisa existe em sua singularidade, mas logo desaba/desagua na próxima vida/forma que irá se tornar.
Tentar descrever o filme é como fazer um exercício de adivinhação:
Começamos pelo som. Escutamos o vento? Um papel amassando? São pássaros. A ambiência é de uma floresta densa, na qual as árvores sussurram. Então, vamos para as imagens: O sol? A concha de um caracol? Uma linha em espiral, simplesmente? Uma forma qualquer, enfim. Ela vira um ovo que vira um pássaro. O pássaro voa até uma boca? A boca cospe no passarinho que voa até o oceano. Ele mergulha e vira um boto cor de rosa. O boto pula e mergulha de volta e sai da água com dois pés, que caminham devagar e curiosos. Os pés, as mãos, pegam um cogumelo. As mãos pertencem a uma mulher, ou a uma figura feminina. Ela engole o objeto avermelhado com um bocejo. Seus traços grosseiros se transformam. Seus olhos, antes arredondados, variam de figuras – até se tornarem abstratos e toda sua forma virar um caracol. O caracol vira uma minhoca? Uma boca? Uma centopeia? Um ser que corre com a casa nas costas. O ser mergulha no oceano – se torna uma gota, um bico, um broto. Dele sai uma teia que vai até as profundezas da terra. A aranha tece sua teia sem pressa. Uma borboleta é capturada pela armadilha. A aranha, ao invés de devorar a borboleta, se torna parte dela. As duas, juntas, coladas, diferentes mas iguais, se tornam uma coisa abstrata que é devorada pelo nada, pelo vácuo verde escuro da terra – o escuro da tinta, do mar, do céu. O som é de um ar preso, o som é do vácuo.
E o filme ainda poderia continuar infinitamente:
O verde escuro pode se tornar a textura densa de uma mata. Na mata, um olho de gato, que se confunde com o verde da íris e a cor das folhas. O gato pula e se transforma num esquilo, que é engolido pelo tronco da árvore, que se transforma num sabiá, que voa até o galho mais alto para se tornar um corvo. Do bico do corvo sai uma minhoca, que despenca do alto até o rio, se tornando um pirarucu que abocanha um dourado e se transforma numa cobra. A cobra rasteja para fora d’água e abocanha um ovo – do ovo sai um passarinho. Seu olho se transforma na figura em espiral – o sol – a casa do caracol? O caracol se recolhe para dentro de sua concha – para então desaguar de volta ao escuro do oceano.
O delicioso de Caracol é um pouco essa brincadeira infinita de transformações. Qualquer figura poderia se tornar alguma outra coisa. E o filme poderia seguir assim, sem nunca parar. O mais bonito desse infinito talvez seja que nada se faz sozinho – tudo depende de uma forma anterior para a transmutação acontecer.
Este texto crítico foi escrito por Larissa Muniz, crítica e pesquisadora, para a obra "Caracol" (Giulia Puntel Souza, Brasil, 2024), exibido em 22 de fevereiro de 2024, na programação do Prêmio Humberto Mauro.
Comments