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Um lugar que não é o presente: cidade e amor em História de Taipei, de Edward Yang (1985)

por Larissa Muniz


Em História de Taipei, de Edward Yang, a cidade e os taiwaneses que vivem nela parecem habitar um outro tempo, diferente do presente – mas que também não é exatamente o passado, nem o futuro. É algum tempo do entre: talvez de uma memória que, como todas as memórias, não pode ser totalmente reconstituída e fica presa num eterno limbo de espera. Junto da espera, a incerteza, o silêncio e a contemplação de uma época que nunca revela seus principais acontecimentos e características. O lugar que guarda essas memórias é Taipei, capital de Taiwan, uma ilha que é e não é um país. O nome é Taiwan, mas também é República da China, e também é Ilha Formosa; tem um governo e uma economia independente, mas internacionalmente é tratado como território chinês. O Japão dominou o país por 50 anos, até o final da Segunda Guerra Mundial. Com o apoio dos Estados Unidos, em 1949 foram os nacionalistas chineses que, expulsos da China continental após perderem a guerra contra os comunistas, migraram para a ilha e lá constituíram um regime militar comandado pelo Kuomintang (KMT) que se estendeu até 1987.


O cinema foi peça fundamental no desenvolvimento cultural de Taiwan nesse período sombrio de sua história. Em 1954, o governo fundou uma estatal, a Central Motion Picture Corporation (CMPC), com o objetivo de produzir obras que promoviam valores partidários, ideais anticomunistas e uma visão unificada da "cultura chinesa". Na década de 1980, com a abertura política e social da ilha, a CMPC passou por uma transformação significativa, e começou a financiar e distribuir filmes de uma nova geração de cineastas, como Edward Yang, Hou Hsian-Hsien e Tsai Ming-liang. A busca por uma identidade movia os diretores do que ficou conhecido como o Novo Cinema Taiwanês. O que implica ser taiwanês diante de tantas influências culturais, depois de décadas de violência, censura e dominação política? Quando os próprios cineastas não são naturais de seus países – Yang foi um dos muitos que imigrou para o Taiwan com sua família –, o que resta para os filmes nacionais? Esse é um cinema que nasce da contradição: inicialmente, ele se desenvolveu a partir do fomento da estatal de um regime ditatorial que queria imagens para propagar suas ideologias. A ferramenta do estado, no entanto, aos poucos se torna uma coisa incontrolável que reflete sobre a própria impossibilidade do nacionalismo.


É num período de transição – o começo da abertura democrática e o milagre econômico dos anos 1980 – que se passa a história de Chin e Lung. Uma história de amor, ou da dificuldade de amar, num lugar e num tempo globalizado, desterritorializado. Eles estão num momento de instabilidade e transformação: Chin acaba de sair da casa dos pais depois de conseguir uma promoção no ramo imobiliário – e logo depois é demitida; Lung acaba de voltar dos EUA e trabalha numa fábrica de tecidos, mas vive na expectativa de se tornar sócio de seu cunhado e se mudar de vez para a “terra da liberdade”. Não sabemos muito sobre o passado de ambos, exceto que eles se conhecem desde a infância, que Lung era um jogador destaque de baseball na escola e que uma amante do passado, Gwan, amiga de Chin, ainda assombra a relação do jovem casal. Estamos diante de uma história de amor contada pelos “restos”, ou vestígios, do que essa relação já foi num passado não explicitado pela narrativa. É possível amar fora do presente?


O tempo é tanto a condenação do romance quanto a razão para eles permanecerem juntos. Chin e Lung parecem viver pela vaga memória de um amor que existiu, sim, mas que se transformou numa coisa irreconhecível, amorfa, silenciosa – impossível de existir no presente. Uma cena que encarna a difícil comunicação do casal é quando, quase ao final do filme, Chin convida Lung para sua casa porque estava com medo de ficar sozinha. É a primeira vez que eles se reencontram depois de um término inesperado. Chin entra na casa, mas deixa a porta aberta para Lung entrar. O cômodo está escuro. Ele entra, mas não fecha a porta. Chin atravessa a sala e fecha a porta atrás de Lung. Ele acende as luzes. Alguns segundos depois, ela apaga as luzes novamente. É somente no escuro, depois de uma coreografia de gestos desencontrados, que seus corpos se aproximam. Chin sugere que os dois se casem. Lung recusa e diz que “o casamento não é uma solução”. Ela pergunta se eles precisam esperar a viagem para os EUA. Ele repete que “os EUA também não é uma solução, é só uma esperança fugaz”. O curto diálogo resume como cada parte do par vive um estado diferente de espera: Chin pensa no futuro (ela quer decidir seu destino, seu próximo passo, sua carreira, sua mudança); Lung está preso no passado e, frustrado pelos dias de glória que nunca voltarão, não consegue tomar uma decisão sobre seus sonhos e desejos.


Na maioria das cenas, Chin e Lung sequer se encaram de frente – eles falam para o vazio antes de falarem para si mesmos – e algum objeto ou superfície se interpõe entre eles. O toque físico é uma coisa rara: não há beijos, abraços, trocas de carícias ou declarações de amor. Nos poucos momentos de contato, apenas uma pequena parte de seus corpos se tocam – Lung coloca a mão no ombro de Chin; Chin apoia sua cabeça no ombro de Lung; Chin dá um tapa abrupto na cara de Lung quando descobre que ele se encontrou com Gwan, sua ex-paixão. O tapa é um choque porque, pela primeira vez no filme, o casal de longa data entra em contato de uma forma íntima e direta, ainda que pela violência: corpo contra corpo. Diante de tal ato, a apatia não é uma possibilidade. Não à toa, eles finalmente rompem depois do incidente e só vão se reencontrar na mesma noite fatal descrita anteriormente, em que Lung, também por uma violência inesperada, é esfaqueado e morre sangrando sozinho na estrada.


Tal como a cidade onde a paixão de Chin e Lung nasce e morre, a relação dos dois é atravessada por diferentes gerações e realidades sociais. Chin e Lung não são apenas Chin e Lung: eles são suas famílias e amigos do passado. A família de Lung vive nos EUA; a família de Chin está em decadência (o pai é um charlatão que bate na mãe; a mãe é dependente e frágil; a irmã é inconsequente). Lung prioriza ajudar o pai de Chin com um empréstimo de dinheiro que ele nunca verá de volta em detrimento de se manter fiel aos planos do casal de se mudar do país. Ele também dá um dinheiro que não possui quando encontra um amigo de seu antigo time de baseball com três filhos e uma esposa viciada em jogos de aposta. O amigo não foi atingido pela promessa do milagre econômico e luta para sustentar a família enquanto definha dirigindo táxis. Chin, apesar de criticar as decisões do parceiro, também dá dinheiro à mãe e à irmã enquanto está desempregada. Em ambos, recai a responsabilidade de lidar com a desilusão das gerações mais velhas e a inconsequência das gerações mais novas.


De planos gerais que engolem as atrizes e os atores até primeiros planos em rostos angustiados, a cidade de Taipei é o ponto de encontro e retorno do filme. Ela continua a existir sem seus habitantes perdidos no tempo. Em Taipei, o trânsito infinito nunca para; os arranha-céus são cinzas durante o dia e super iluminados durante a noite; as vistas das janelas, varandas e coberturas parecem silenciosas demais para o movimento ininterrupto dos carros. As personagens são apáticas, distantes e, muitas vezes, tão quietas quanto os planos abertos e contemplativos da paisagem. Prédios, veículos e pessoas estão presas num mesmo estado de letargia – uma espécie de hipnose que contamina também a nós, público, que somos convocadas a entrar no fluxo das imagens e nos perder nas composições geométricas e na montagem lenta do filme. A cidade é um fantasma que amedronta pela multiplicação dos infinitos prédios (um arquiteto, colega de trabalho de Chin, afirma que não reconhece mais qual edifício projetou) mas, tal como uma assombração, exerce um fascínio pelo mistério de sua existência. Como pode existir uma cidade como Taipei? Como pode ser possível filmar nessa cidade? Como foi possível continuar depois de tantos horrores na história recente de Taiwan?


Essas são algumas perguntas que parecem estar nas entranhas do filme – elas nunca emergem de forma explícita na narrativa, mas se mostram na desesperança das relações conturbadas de Chin e Lung e das pessoas que os rodeiam. Em meio a uma cidade que nunca para de se transformar, cada vez mais tecnológica, mais americanizada e mais desigual, Yang parece desacelerar o tempo e guardar como aquela paisagem estava em um determinado momento do mundo, no ano de 1985, quando um jovem casal fictício, que poderia ser qualquer casal ordinário de uma Taipei “real”, tentava fazer uma relação se sustentar depois das ações avassaladoras da vida. Yang filma como se a paisagem pedisse para ser filmada, para capturar o rastro de uma luz, ou uma sombra, que nunca mais retornará ao presente. Neste sentido, prédios, monumentos, praias, estradas e o interior das casas e apartamentos estão todos num mesmo plano de filmagem. Não há uma hierarquia de duração ou mesmo de importância narrativa entre os cenários internos e externos. Tanto o apartamento que Chin compra no início do filme quanto a vista de seu novo escritório ao final estão submetidos à mesma ação do tempo – e resta ao cinema de Yang guardar essa sensação específica de uma coisa que existe, mas está fadada a se transformar.


Talvez por isso o tempo de História de Taipei, mas também da filmografia de Yang como um todo, seja o tempo dos sonhos. Em Os terroristas (1986), por exemplo, lidamos com uma narrativa fragmentada que cruza histórias aparentemente desconexas, como o desejo de fuga do casamento de uma escritora de ficção com o desejo de fuga de uma adolescente criminosa. Em Um dia quente de verão (1991), os anos do regime militar são relembrados por meio da formação de gangues de jovens estudantes que imitam a violência do país e se matam de forma indiscriminada. Por fim, em As coisas simples da vida (2000), último longa do diretor, e talvez o mais otimista, acompanhamos diferentes gerações de uma mesma família que precisa lidar com a iminência da morte. Em todos os filmes, há uma certa atmosfera de um tempo que nunca pode ser totalmente capturado (algo sempre escapa na cena que nos fazem perguntar “o que se passou aqui?”) e de uma vida que continua apesar de todas as violências (pequenas e grandes) que a atravessam.


Há qualquer coisa fugidia nas imagens de Yang, que são altamente sensoriais e, ao mesmo tempo, parecem prestes a se dissolver como se nunca tivessem existido no filme. Não à toa, Apichatpong Weerasethakul, cineasta tailandês que também cria obras de fluxo e de demora, conta que os filmes do Novo Cinema Taiwanês o colocam para dormir: “Acho que talvez haja um poder especial nesses filmes que levam os espectadores a um mundo diferente. Um estado diferente de relaxamento, onde nos podemos deixar levar. O filme nos transporta para um mundo de sonhos, então, quando acordamos, ainda estamos lá, quase como uma viagem única.”[1] Numa mente semi adormecida, realidade e sonho se confundem como se estivessem num mesmo plano: tudo e nada é possível. Em História de Taipei, esse estado, uma espécie de sonambulismo, não é diferente. A narrativa se desdobra lentamente, em ondas suaves, mas, num piscar de olhos, muda de direção sem qualquer aviso. Vemos uma transição lenta e inesperada da apatia para a violência; da promessa de casamento para o término sem retorno; de uma paixão inocente para um assassinato. Uma cena emblemática neste sentido é quando Lung, depois de perder seu dinheiro em apostas, caminha cabisbaixo e sozinho numa madrugada tranquila. Um táxi passa por ele na estrada, mas não para diante de seu sinal. Subitamente, Lung corre atrás do carro com um grito desesperado e visceral, como se liberasse todas suas angústias engolidas ao longo de algumas décadas de vida. Ele volta a caminhar na noite como se nada tivesse acontecido.


Definir os rumos da narrativa e da própria cidade é impossível em História de Taipei. O que resta são incertezas: de uma relação amorosa, de uma carreira num mundo globalizado cujos trabalhos ficam cada vez mais precarizados, de uma identidade nacional que talvez não exista. Mas há também a afirmação de que a vida continua, de um jeito ou de outro. Na cobertura de um prédio abandonado, Chin e o amigo de sua irmã (quem mais tarde esfaqueia Lung) contemplam o vazio da madrugada. Atrás deles, uma fachada luminosa e gigantesca da japonesa Fuji Film – com o “M” do letreiro apagado. O mesmo país que ocupou a ilha por 50 anos, com uma forte tentativa de dominação cultural, fornece películas para a produção cinematográfica internacional nos anos 1980. A ironia e melancolia da cena não escapa a Yang, que escolhe fazer dessa contradição uma presença luminosa no filme.


Com isso, o diretor enfrenta os dilemas de se filmar no período em que filmou com uma dose de pessimismo e outra de fascinação. Lembremos: uma estatal nacionalista influenciava a indústria audiovisual do país, que passava por uma abertura democrática e um rápido desenvolvimento econômico muito influenciado pelos EUA. Numa cidade e num país que se transformava enquanto o cineasta realizava seus filmes, não parecia possível encontrar a identidade taiwanesa que tanto buscava o Novo Cinema. A Yang, parecia mais interessante capturar a angústia e beleza das mudanças do que fincar um status sobre o que elas implicam na vida de suas personagens (e talvez da sua própria). História de Taipei só existe da forma como existe por conta de toda a complexa rede de influências multiculturais que formam essa Taiwan de 1985. No filme, Taipei não é bem um lugar. Taipei é um tempo. E a poesia dessa história do tempo está na tentativa de guardar (e criar) uma memória de uma cidade e de um amor que não existem mais.

 

[1] Trecho retirado do filme Flowers of Taipei: Taiwan New Cinema, de Chinlin Hsieh (2014)

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