por Victor Guimarães
A estrada da figuração do desejo no cinema é longa e sinuosa, mas se há uma estação que não se pode saltar, é esta: Erotikon (1929), de Gustav Machatý. Obra ainda muito negligenciada e com escassa fortuna crítica fora da República Tcheca, o quinto filme dirigido por Machatý é uma dessas obras-primas fulgurantes que, quando descobertas por um espectador desavisado, são capazes de desorientar todas as coordenadas de nossa história pessoal do cinema. Sua fama é a de ser um marco do erotismo no cinema tcheco, e esse realmente é o coração do filme, como veremos, mas sua marca decisiva para a história merece ser estendida para muito além das fronteiras do país.
Quase toda a metragem de Erotikon é composta por um melodrama eficiente e elegante, com um ritmo preciso e sem sobras, como nos melhores momentos do cinema clássico-industrial silencioso, que Machatý aprendera a fazer em sua temporada hollywoodiana entre 1920 e 1925. O futuro realizador, que havia trocado o colégio pelo cinema na adolescência – começou como bilheteiro, depois pianista em um cinema de Praga, e logo foi ator e diretor de arte –, dirigiria seus primeiros filmes ainda em seu país de origem, no final dos anos 1910. Por volta de 1920, no entanto, parte em viagem para os Estados Unidos e se torna funcionário da Universal Pictures, inicialmente varrendo estúdios e atendendo clientes no zoológico da empresa, mas logo começa a trabalhar com D. W. Griffith e chega a ser creditado oficialmente como assistente de Erich von Stroheim num de seus filmes mais conhecidos do período, Foolish Wives (1922). De volta a Praga, produz e dirige dois longas-metragens, Kreutzerova Sonáta, adaptação e um romance de Tolstói que obtém muito sucesso comercial, e Svejk v Civilu, ambos em 1927. E culmina seu período silencioso com Erotikon, que é inspirado na obra e tem colaboração no roteiro de Vítěszlav Nezval, o grande poeta surrealista tcheco que pertenceu ao movimento Devétsil, e que também escreveria com Machatý seu filme seguinte, Ze Soboty na Neděli (1931).
Na sequência fundacional de Erotikon, logo no começo do filme, a diferença decisiva do olhar de Machatý – em colaboração com a atriz eslovena Ita Rina – começa a aparecer. George Sidney (Olaf Fjord), um viajante que perde o trem numa noite de tormenta, é convidado pelo guarda da estação a passar a noite em sua casa para se proteger da chuva. O poderoso jogo começa quando Andrea (Rina), a filha do guarda, adentra o filme. Inicialmente, ela desce uma escada e aparece ao longe, no fundo do plano. A casa, sóbria e cuidadosamente decorada por Alexander Hackenschmied – diretor de arte que, depois de emigrar para os Estados Unidos, ficaria conhecido como o fotógrafo e cineasta Alexander Hammid, marido e colaborador dos primeiros filmes de Maya Deren –, é o cenário decisivo onde o filme alçará voo. Mas, nesse momento, ainda é George quem olha.
A câmera sobe para enquadrar o movimento sugestivo e ameaçador do corpo, o meio sorriso e o olhar malicioso do viajante galanteador. Ao movimento do quadro, um espectador anônimo na sessão do Cine Humberto Mauro reagiu: “Ah lá, cresceu o olho!”. E a reação não poderia ser mais acurada. Nesse momento, ainda estamos no terreno da “mulher como imagem, o homem como dono do olhar”, como sintetizou Laura Mulvey em seu famoso ensaio sobre o cinema clássico, “Prazer visual e cinema narrativo”. Ela, jovem inocente, é um objeto de contemplação e ele é o sujeito do olhar. Mas logo, logo o jogo vai virar. Impactada pela presença de George, ela diz ao pai que tem medo de estranhos, não sem antes ajeitar o cabelo em frente ao espelho do quarto – gesto que repetirá antes ir novamente ao encontro do desconhecido. Em frações de segundos, na superfície dos olhos grandes e nos meios sorrisos de Ita Rina se precipitam todos os matizes entre a curiosidade, o medo, a timidez e o desejo, como num redemoinho.
E então ela passa a olhar. Perscruta o corpo de George. De cima para baixo e de baixo para cima. Uma sociedade inteira espreita no extracampo, é claro. O pai foi trabalhar de madrugada e uma garota jovem e solteira, nos anos 1920, está fazendo sala para um desconhecido sozinha em casa. Mas a câmera de Machatý acolhe os olhares inconfessáveis da moça. Será sempre assim, num jogo permanente com o interdito, que o desejo se manifestará em Erotikon.
Num crescendo ritmado – o ritmo é um dos traços mais marcantes do filme, com uma variação interna impressionante –, a troca de olhares vai avançando, até que ela nota na mala de George um perfume, cujo nome dá título ao filme. De início ela rejeita que ele lhe aplique no pescoço essa versão moderna da poção de amor, mas logo aceita o presente e o leva para o quarto, não sem antes agradecer-lhe com um olhar frontal onde já se adivinha toda a explosão que virá em seguida.
O perfume inebria o desejo de Andrea, que por sua vez contaminará todo o filme numa sequência antológica. Encerrada no quarto trancado com chave, ela dá vazão ao desejo incontido em movimentos tortuosos na cama, em um jogo de luzes e sombras altamente contrastadas. O desejo de Andrea em Erotikon é uma matéria sinuosa, que desconcerta o pudor da encenação clássica.
Ela desperta do sonho erótico (não sabemos bem se está dormindo ou acordada – sabemos que sonha) e sai para atender o telefone em plena madrugada. George está desperto na sala. Ela inicialmente resiste às investidas dele, mas quando ele lhe beija o dedo, tudo começa a desfazer-se. Nunca saberemos se é gesto do cineasta ou defeito de conservação da cópia, mas o fato material é que o beijo no dedo e a reação de Andrea acontecem embebidos numa luz estourada, branquíssima, em que os contornos dos corpos já se desdesenharam. Os personagens estão como que desfeitos numa matéria vibrátil, onde já não há mais linhas precisas a delimitar o que é corpo e o que é o ar que ambos respiram. Quando o desejo dela acende, o cinema se desfigura.
Durante toda a sequência que se segue ao primeiro toque, a câmera perde o foco e o rumo. Os close-ups no rosto de Andrea são intercalados com movimentos bruscos e aleatórios em direção aos objetos e às paredes da casa. Já não se filma para mostrar algo – no fundo, pouco importa o que se dá a ver nesses planos –, mas para manifestar, no modo de desver tudo ao redor, o desejo incandescente da protagonista. Já não seria acurado falar em ponto de vista. O que vemos aqui é o impuro deslimite que o desejo erótico produz, ao desorientar a visão. O filme enxerga com os olhos fechados de Andrea, numa encenação crispada pelo desejo incontido, que já não pertence ao olhar da personagem, mas vaza por toda parte. Já não se trata do ponto de vista da protagonista, mas de uma subjetiva do próprio desejo.
Como escreveu Colette de Castro com base no Roland Barthes de O prazer do texto, seria impreciso dizer que Erotikon é uma representação do orgasmo de Andrea, uma vez que é impossível representar o gozo; o êxtase, de acordo com Barthes, é justamente a “destruição da representação”. Diante desse impasse, Machatý abraça o impossível: esfacela a representação; insiste no fragmento do corpo ao passo que gira a câmera para todos os lados; faz emperrar a máquina figurativa do cinema.
Na cena, de início, quase não vemos George. É da afirmação do desejo de Andrea que se trata, numa atenção detida à pele e ao impensado do corpo. Machatý fragmenta o frêmito, e constrói a cena inteira com pedaços insinuantes dos corpos. O erotismo aqui não precisa da nudez, mas da vibração. É uma matéria rítmica e tátil. O jogo agora já virou completamente. Agora é ela quem lhe toma agressivamente pelo cabelo e lhe traz para o regaço.
Laura Mulvey, em “Reflexões sobre ‘Prazer visual e cinema narrativo’ inspiradas por Duelo ao Sol” – a igualmente famosa autocrítica de seu ensaio clássico – nos diz inicialmente que, “com demasiada frequência, a função erótica da mulher é representada pelo passivo, pela espera”, mas logo matiza essa tese com a análise do filme de King Vidor, que é um melodrama travestido de faroeste. Para Mulvey, ao centrar-se na protagonista feminina, o melodrama balança o edifício do cinema clássico e seu binômio atividade masculina/passividade feminina. Mas não é por ser um melodrama – o que também será, dali em diante – que Erotikon rearranja a balança do gênero, e sim por escapar às convenções figurativas dos gêneros clássicos em geral (incluindo o melodrama). Nessa longa sequência do enlace amoroso, o filme de Machatý se nutre da afirmação do prazer de Andrea para abraçar a figuração de vanguarda, e se aproxima muito mais das elaborações visuais do desejo feminino presentes na filmografia imediatamente anterior de Germaine Dulac, por exemplo, seja em A Sorridente Senhora Beudet (1923) ou O Convite à Viagem (1927).
É assim que vemos os planos que abrem e fecham a cena do prazer. São figurações aquáticas, abruptas, externas ao espaço onde se desenrola a ação, e como que envelopam o interlúdio líquido que o filme fabricará nesse ínterim. São aparições quase inaugurais de todo um repertório de formas aquosas que o cinema de afirmação do desejo feminino incorporará ao longo da história – Maya Deren, Carolee Schneemann, Barbara Hammer –, mas também são o anúncio e a culminação de uma liquefação momentânea das formas narrativas no interior do filme. Como nessa fase da obra de Dulac, os arroubos vanguardistas estão integrados à narrativa: perturbam-na, mas não a destroem inteiramente; balançam o edifício, mas não o derrubam. Estão, no entanto, contidos em seu interior, o que os faz também contaminar o resto.
Algo muito semelhante acontece no filme mais conhecido de Gustav Machatý, Ekstase, filmado na Áustria em 1933 e estrelado por Hedy Kiessler, que a partir do filme se tornaria mundialmente conhecida como Hedy Lamarr, uma das grandes divas da Era de Ouro de Hollywood. Ela vive uma moça que, rejeitada pelo marido desde a noite de núpcias e diante da ruína iminente do casamento, decide voltar à casa de campo do pai e pedir o divórcio. Lá ela conhece um trabalhador da fazenda, com quem terá uma noite tão decisiva – para ela e para o filme – como a de Andrea e George em Erotikon. Numa sequência magistral, inteiramente sem diálogos (embora o filme já seja sonoro), ela fuma, insone, na madrugada, enquanto a câmera percorre as paredes da casa e ausculta os objetos como num filme de horror. Caminha pelos amplos salões, olha pela janela, toca piano, mas nada parece dar jeito. Sua vontade de rever o rapaz é demasiado intensa. Então ela sai em disparada, no meio da noite, e atravessa a fazenda para ter com ele. Num ímpeto de afirmação do desejo feminino muito, mas muito distante de Hollywood – que nesse momento ainda mal começara a sofrer os efeitos repressivos do Código Hays, que se instalariam de vez em 1934 –, ela literalmente invade a casa do moço e lhe encara de frente. Nesse momento, Machatý mobiliza um arsenal de formas do cinema de vanguarda para fazer jus à explosão do desejo (que culminará naquela que, embora sem acuidade histórica, ficou conhecida como a primeira cena de orgasmo feminino jamais filmada): paradas na imagem, sobreposições, desfoques, jogos de luz e sombra, fragmentação dos corpos dos personagens, impressionantes esculturas de tempo que compõem um ritmo vibrante, e momentaneamente ignoram o encadeamento narrativo clássico.
“No jardim do cinema Excelsior naquela noite, você podia ouvir a respiração dos espectadores extremamente atentos, você sentia uma emoção percorrer a plateia”, disse um jovem crítico chamado Michelangelo Antonioni por ocasião da exibição do filme no festival de Veneza, em 1934. O festival, aliás, renderia a Machatý um prêmio de melhor diretor, que lhe seria negado por intervenção do Vaticano. O filme também seria proibido durante décadas nos Estados Unidos, com a cópia retida na alfândega e rotulada como pornografia. A sequência central de Ekstase é realmente de tirar o fôlego e de assustar beatos, como era a de Erotikon, esse “estudo poeticamente observado do despertar sensual de uma mulher”, como escreveu Margarita Landazuri. E assim como no filme anterior, o que se seguirá é um melodrama que espalhará para o resto da metragem o impacto dessa explosão visual momentânea.
Em Erotikon, quando George for embora no trem e deixar a moça apaixonada e sozinha, o filme retornará aos trilhos já trafegados. Mas, mesmo quando é melodrama e não filme de vanguarda, está longe de ser convencional. A delicadeza das composições e especialmente o ritmo vigoroso afirmam um olhar nada banal. O protagonista masculino tem algo do cafajeste de Stroheim em Foolish Wives, mas a figuração do desejo feminino não poderia estar mais distante da casta Hollywood da época, epitomizada pelas heroínas desencarnadas por Lilian Gish nos filmes de Griffith. E não apenas por Andrea, mas também por Gilda (Charlotte Susa), amante de George que enrola o marido bobalhão enquanto se diverte às escondidas com o bonitão sem escrúpulos. Andrea e Gilda parecem inaugurar uma linhagem de personagens femininas afirmativas do próprio desejo que, na história do cinema tcheco, terá capítulos fundamentais na Lida de Appassionata (Jiří Weiss, 1959), nas Marias de As Pequenas Margaridas (Věra Chytilová, 1966), na Eva de O Fruto do Paraíso (Věra Chytilová, 1970) e na personagem-título de Valerie e Sua Semana de Deslumbramentos (Jaromil Jireš, 1970).
O melodrama segue com George voltando à cidade e à amante, enquanto a moça sofre por sua ausência. Escreve cartas, ele as lê com algum remorso, mas continua sua vida citadina de sedutor errante. Enquanto isso, Andrea engravidara, deixara a casa do pai para ter o filho longe dos olhares dos vizinhos, mas o filho nascera morto e, sozinha, ela precisa agora errar sozinha na estrada. Antes disso, em seu delírio febril, o desejo volta a perturbar o quadro momentaneamente.
À mercê do mundo dos homens, Andrea sofre uma tentativa de ataque, e termina por salvar a vida do homem que a resgata com uma transfusão de sangue. Casa-se com ele, provavelmente mais por segurança do que por desejo – não há mais nenhum prazer em seus olhos grandes, e o filme faz questão de esconder o matrimônio com uma elipse –, até que reencontra George na cidade. Ele se torna amigo de seu marido, e então o jogo perigoso e insinuante dos olhares recomeça. Os acontecimentos típicos do melodrama – os enganos, as coincidências trágicas – se sucedem na narrativa. Mas Machatý e Ita Rina encontrarão sempre uma forma de figurar o desejo, quase sempre reprimido, mas escapando pela tangente sempre que possível. Numa outra sequência impressionante, um jogo de xadrez entre o marido e o antigo amante será o palco dos olhares que desconcertam a estabilidade da cena.
Toda a sequência do jogo de xadrez é uma amostra precisa do gênio rítmico e visual de Erotikon. O encadeamento narrativo de Machatý é sempre fluido e veloz, com um uso prodigioso da elipse, mas nesses momentos em que o desejo requer seu lugar no filme, o ritmo se detém: torna-se lento e minucioso. A sequência dura longuíssimos minutos, e se resolve inteira na troca de olhares entre os três personagens, ou nos mínimos gestos que contêm um mundo inteiro.
O melodrama já sequestrou nossos corações e tudo o que importa é se ela terá a coragem de aceitar o perigo do amor ou sucumbirá à instituição do casamento. Durante segundos que parecem uma eternidade, todo o filme está por um fio, nosso fôlego de espectadores está em suspenso, e tudo isso porque não sabemos ainda se Andrea aceitará ou rejeitará com a mão o carinho do marido. Mais tarde, o marido perguntará a Andrea: “Por que você não é sincera?” (exigindo que ela confesse seus sentimentos por George). E ela lhe responderá: “Nunca fui tão sincera como esta noite”. A frase é preciosa porque traduz a respiração formal de Erotikon: não importa nem um pouco o que digam os personagens; não é nos diálogos ou nas ações, e sim nos menores gestos, nos frêmitos mais íntimos de uma pele, que a verdade (ao menos a verdade deste filme) se impõe.
Ao final, o aspecto trágico do melodrama triunfará com o assassinato de George (que a essa altura já não é mais um cafajeste, como me objetou acertadamente um espectador anônimo após a sessão no Cine Humberto Mauro) pelo marido de Gilda, numa sequência de montagem primorosa que intensifica o clímax final de Erotikon. Andrea volta à casa do marido, sucumbe à estabilidade da vida familiar. Estamos bem perto da convenção e bem longe de um final feliz que recompensasse o desejo que o filme fez aflorar em nós. Mas haverá uma última câmera instalada na roda de um trem, a nos lembrar que, no cinema, a liberdade do olhar e a vibração do desejo podem ainda triunfar, mesmo que apenas por um breve momento.
Referências:
DE CASTRO, Colette. “The Destruction of Bliss”. East European Film Bulletin, 2017. Disponível em: https://eefb.org/retrospectives/gustav-machatys-erotikon-1929-and-ecstasy-ekstase-1933/
LANDAZURI, Margarita. “Erotikon”. 2009. Disponível em: https://silentfilm.org/erotikon-1/
MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. 3 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
MULVEY, Laura. “Reflexões sobre ‘Prazer Visual e Cinema Narrativo’ inspiradas por Duelo ao Sol, de King Vidor (1946)”. In: RAMOS, Fernão (Org.). Teoria Contemporânea do Cinema. São Paulo: Senac, v. 1, p. 381-392, 2005.
Comentários