por Mariana Mól
No seu livro Esculpir o Tempo, o diretor Andrei Tarkovski conta que viu Persona, de Ingmar Bergman, inúmeras vezes e a cada vez percebia algo de novo no filme. “Como verdadeira obra de arte, Persona sempre permite que nos relacionemos pessoalmente com seu mundo, interpretando-o de modos diferentes sempre que voltamos a vê-lo” (Tarkovski, 1998, p. 201). O mesmo posso dizer de Stalker (União Soviética, 1979), último filme realizado pelo diretor na União Soviética.
Há exatos 20 anos, vi Stalker pela primeira vez. Meu então namorado (hoje companheiro) me mostrou o longa dizendo: “amo esse filme e acho que você vai gostar também”. Lembro de achar o filme hermético, difícil, mas bonito. E a cada nova oportunidade de vê-lo, fui descobrindo algo novo, reparando mais na direção de arte, gostando mais dos planos sequências, adentrando mais à Zona e aos questionamentos do personagem Stalker e, também, adotando novas dúvidas. A chave foi mudando dinamicamente, como a vida mesmo, depois de ter feito mestrado e doutorado em Cinema, dos anos como professora de cinema e audiovisual, de ter sido espectadora ativa da Mostra Tarkovski – eterno retorno, promovida pelo Cine Humberto Mauro (em 2017), de ter feito o curso A hermenêutica cinematográfica de Andrei Tarkovsky, com crítico de cinema Dmitry Salynskiy (dentro dessa mostra) e, ainda de ter inúmeras vezes escutado a apaixonada defesa da querida professora Nelma Costa.
Stalker está entre as obras mais importantes da história da cinema e possui uma extensa e reconhecida fortuna crítica, desde seu lançamento, há mais de cinco décadas. E ao me questionar o que poderia ainda dizer sobre o filme, decidi trilhar um caminho mais pessoal, experienciado, nesse texto, que não destacasse somente os aspectos técnicos e narrativos do longa. Porque falar de Tarkovski é também falar de afetos, da importância da formação de público, do poder do olhar (da observação) e da mobilização interna que os filmes têm! Aí decidi compartilhar minha experiência, citar a importância do Cine Humberto Mauro, equipamento público que mantém ações formativas que mobilizam nossos corações e mentes, e também como resposta ao cinema do próprio Tarkovski, que declarou “a arte atinge as emoções de uma pessoa, não sua razão. Sua função, por assim dizer, é modificar e libertar a alma humana, tornando-se a receptiva ao bem” (Tarkovski, 1998, p. 199).
Nesta ficção-científica, de um mundo pós-apocalítptico, acompanhamos os três homens (Professor, Escritor e o Stalker) numa jornada a um lugar perigoso, proibido e poderoso, chamado de a Zona. Nesse local destruído por um meteorito e que ganhou poderes mágicos, há a Sala – local ainda mais especial, pois quem a alcança pode ter realizado seus maiores e mais secretos desejos. Nessa breve sinopse, uma parte da história é apresentada, mas ao mesmo tempo em que vemos os deslocamentos físicos dos personagens, vamos, aos poucos, aprofundando nas questões metafísicas e filosóficas do filme. Tarkovski nos guia no trajeto até a Zona, deixando pra trás a rotina, a vida enfadonha, cínica e sépia dos personagens que buscam repostas e transformações na Zona – e o filme, literal e visualmente, ganha cores no momento em que cruzam a fronteira. Uma das maiores belezas do longa-metragem habita na jornada interna que os personagens vão trilhar, ao deambular e divagar pela Zona, num deslocamento físico pelo espaço destruído, úmido e vazio, mas que vai sendo preenchido pelos questionamentos atemporais sobre a vida, a morte, os sonhos e a esperança nos homens e no universo sagrado que os cercam. Temas presentes em Stalker e em todos os outros filmes do diretor.
No longa vemos como as estratégias técnicas empregadas estão todas à favor da narrativa que se deseja desenvolver. O roteiro e os diálogos propõem situações e questões existenciais profundas enquanto nós, espectadores, somos conduzidos por Tarkovski e seu domínio e controle imagético (característica já estabelecida e reconhecida do diretor) seja nos planos imóveis, como pinturas, nos quais vemos os personagens se moverem no quadro, à distância; nos planos sequências magistrais; nas durações das cenas quase que em tempo real das ações retratadas; nos primeiros planos super expressivos; e nas panorâmicas que apresentam, serpenteiam e deslumbram o espaço do cenário a cada novo caminho apontado pelo Stalker.
Luiz Carlos Oliveira Jr chama nossa atenção para que apreciemos Stalker não pelo que o filme sugere, mas pelo que mostra: a beleza das imagens, os atores brilhantes e a mise-en-scène espetacular:
tanto do binômio revelação/ocultação (quando a câmera sai de um personagem apenas para reencontrá-lo mais adiante, após ele se deslocar fora-de-quadro) quanto da prestidigitação (como no plano-seqüência em que a câmera se distancia dos três homens, atravessa uma passagem retangular e depois uma enorme poça, estaciona do outro lado, enquadrando-os numa “moldura dentro da moldura”, assiste ao início e ao término da chuva, muda a iluminação) (Oliveira Jr., 2023).
O crítico destaca a cena final do filme como um dos planos mais bonitos da história do cinema, quando a menina deita o rosto na madeira que estremece ao som do trem que passa tocando a 9a Sinfonia de Beethoven. E arremata: “não há nada o que dizer, no fundo é tudo uma questão de ver e ouvir, tanto para nós quanto para eles dentro do filme”(Oliveira Jr., 2023).
Tal qual um road movie, podemos dizer que Stalker trabalha a ideia de que a travessia em si (e os encontros, acasos e interrupções dela) é mais importante que a própria Sala. O que aconteceu no caminho, no meio da trajetória, já modificou internamente (e intensamente) aqueles homens. Nas palavras de Tarkovski, a intenção do filme era fazer com que o espectador sentisse que Zona está aqui, junto a nós:
A Zona não simboliza nada, nada mais do que qualquer outra coisa em meus filmes: a zona é uma zona, é a vida, e, ao longo dela, um homem pode se destruir ou pode se salvar. (…) No final das contas, tudo pode ser reduzido a um único e simples elemento, que é tudo com que alguém pode contar durante a sua existência: a capacidade de amar (Tarkovski, 1998, p. 241).
Referências
OLIVEIRA JR., Luiz Carlos. Stalker. In: Contracampo revista de cinema. Disponível em http://www.contracampo.com.br/61/stalker.htm. Acesso em 10 de julho de 2023.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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