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Ressonâncias Autorais em Chantal Akerman

  • 1 de abr.
  • 9 min de leitura

por Natália Marchiori da Silva


Chantal Akerman (1950-2015) dispensa apresentações. Cineasta de origem belga, ela emerge como uma das figuras mais luminosas do cinema. Sua obra, que transcende o tempo, continua a ecoar em diversos círculos, mesmo anos após sua morte, como é o caso da seleção realizada pela revista britânica Sight and Sound, que elegeu em 2022 Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) como o melhor filme de todos os tempos. O filme eleito destaca-se como uma das obras de maior repercussão de sua carreira, além de ser um cânone do cinema realizado por mulheres, vastamente relacionado ao debate feminista, mesmo que a própria diretora não se reconhecesse como tal. Em inúmeras entrevistas, como a realizada por Angela Martins (1979), Akerman declara que gostaria que seus filmes fossem vistos como “filmes de Chantal Akerman”, o que deixa claro seu aceno para o debate autoral.


A concepção de autoria no cinema, para teóricos como Jean-Claude Bernardet (1994), funda-se nas repetições de elementos que são carregados e referenciados ao longo da carreira dos artistas. Deste modo, o diretor-autor cria uma relação de unidade dentro de toda sua produção, como se houvesse somente uma obra, um tema ou uma matriz perseguida pelos cineastas. Mesmo que haja filmes em que o parentesco não esteja óbvio, o diretor-autor, conforme as declarações de Bernardet, utiliza estruturas fundamentais para o desenvolvimento de seu tema nos filmes, que se expressam por meio da mise-en-scène – ou seja, daquilo que é organizado dentro do plano.


A construção da matriz, segundo o teórico, é um trabalho sobre as redundâncias, “é necessário que o autor se repita, ou é necessário que o crítico interprete sua obra como um sistema de repetições” (BERNARDET, 1994, p.31). Uma vez que a matriz está esclarecida, ela passa a condicionar os filmes, transformando toda a obra em um “sistema fechado, reino das redundâncias, em que os filmes precedentes prenunciam os posteriores, e estes desenvolvem e aprimoram o que já estava contido nos anteriores” (BERNARDET, 1994, p.35).


Nos filmes de Chantal Akerman, essas repetições se manifestam tanto nos planos longos e fixos, nos enquadramentos rígidos e nos cenários domésticos, quanto na temática – o foco no cotidiano das mulheres, que, em muitos momentos, a cineasta constrói a partir de sua experiência de vida enquanto mulher e filha, de forma a incorporar aspectos autobiográficos na criação de suas personagens.


Essa forte relação entre vida pessoal e filmografia acentua ainda mais a marca de sua autoria, conferindo ao seu cinema uma complexidade singular às suas personagens – o que, naturalmente, aproxima a leitura e análise de seus filmes numa perspectiva de gênero. Embora a diretora belga rejeite o feminismo enquanto "estética", em busca de uma linguagem própria, a frase de Akerman – “Eu penso sobre todas as questões óbvias sobre mulheres – como o trabalho e o aborto” (AKERMAN, conforme MARTIN, 1979, p. 28, tradução nossa) – expressa uma autoria que, embora permeada pela experiência feminina coletiva, preserva sua singularidade. Isso contradiz a preocupação de alguns movimentos de mulheres da época, que defendiam o rompimento com a noção de indivíduo, priorizando a coletividade em detrimento da afirmação da autoria.


Ao olhar para o conjunto de filmes de Chantal Akerman exibidos na mostra Clássicas: Insubmissas Mulheres de Cinema, que inclui três longas-metragens da década de 1970, um curta da década de 1980 e o último longa de sua carreira, lançado pouco antes de sua morte em 2015, é possível traçar algumas linhas de força que se repetem ao longo de toda sua produção, a qual soma cerca de 40 filmes. Desejo destacar exatamente o gesto de repetição de algumas marcas que atravessam toda sua filmografia, até mesmo nos filmes em que essa relação é menos óbvia. São estes os filmes: Eu, Tu, Ele, Ela (Je, Tu, Il, Elle, 1974); Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975); Os Encontros de Anna (Les Rendez-vous d'Anna, 1978); Tenho Fome, Tenho Frio (J'ai faim, J'ai froid, 1984) e Não é um Filme Caseiro (No Home Movie, 2015).


Em Eu, Tu, Ele, Ela, filme interpretado pela própria Chantal, acompanhamos a personagem em três momentos distintos. No primeiro, Eu (Je), ela se encontra em seu apartamento, vivendo um ritual de cura e luto após o término de um relacionamento. No segundo, Ele (Il), ela se liberta de seu confinamento e pega uma carona com um caminhoneiro. Por fim, no terceiro, Ela (Elle), ela chega à casa de sua amante. Já o Tu refere-se ao espectador, a quem assiste ao filme.


Em Jeanne Dielman, acompanhamos três dias da vida de uma mulher viúva, interpretada pela musa do cinema francês Delphine Seyrig, que cuida de seu filho adolescente e se prostitui às tardes como forma de sustento. Akerman declarou em várias ocasiões que essa personagem e seu cotidiano doméstico foram inspirados em sua mãe, uma referência também presente em um filme anterior, News from Home (1976). Desde então, essa influência se torna cada vez mais explícita em suas obras, como na emblemática cena de Os Encontros de Anna, seu último filme produzido na década de 1970. Na obra, a personagem cineasta, alter ego de Akerman, viaja pela Bélgica, Alemanha e França para o lançamento de um filme e, ao longo de seu trajeto, tem diversos encontros, sendo o mais significativo com sua mãe. Elas alugam um quarto de hotel e dormem na mesma cama, demonstrando muita intimidade e afeto, enquanto Anna compartilha com a mãe suas experiências com outras mulheres.


Esse desejo de registrar a relação mãe/filha atinge seu auge no último filme de Akerman, Não é um Filme Caseiro, no qual, ao longo de uma hora e cinquenta e cinco minutos, acompanhamos a relação entre elas sem a mediação de alter egos. Ali, vemos Natalia Akerman, a mãe, já em idade avançada e próxima da morte, e Chantal Akerman, a filha, que expressa seu medo de perder a mãe por meio da câmera, captando imagens obsessivas de seu cotidiano, depoimentos etc.


Dentre os filmes escolhidos, o curta-metragem Tenho Fome, Tenho Frio se diferencia por não apresenta a mesma carga autobiográfica e de referência à figura da mãe. No entanto, ele não deixa de dialogar com outros filmes de Akerman: ao longo dos 12 minutos em que acompanhamos a fuga de duas jovens de 18 anos em busca de liberdade e novas experiências, como a sexualidade, é possível perceber elementos que se encontram tanto nos longas anteriores quanto nos filmes futuros da cineasta, como o Retrato de uma garota do fim dos anos 60 em Bruxelas (Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 a Bruxelles, 1993).


A presença recorrente de Natalia Akerman nos filmes da filha é um aspecto a ser destacado como uma das grandes repetições e inquietações de seu cinema. Mateus Araújo Silva (2010) observou que esse elemento cria uma solidariedade entre os filmes. As memórias, os diálogos e as trocas de cartas entre a cineasta e sua mãe são carregados para os enredos e personagens, pairando "como uma sombra sobre boa parte de sua obra" (ARAÚJO SILVA, 2010, p. 145) [1]. Isso cria inter-relações próprias nos filmes, que, em alguns casos, se autorreferenciam. "Eles vão tecendo uma rede de relações em que cada um remete ou responde a outros, ecoa ou prolonga questões deixadas por eles, e todos acabam se constelando em torno de algumas obsessões da cineasta" (ARAÚJO SILVA, 2010, p. 142).


Além da presença da mãe, friso que, nos filmes exibidos na presente mostra, é visível outra grande obsessão de Akerman: a tensão estabelecida entre o ambiente doméstico (que carrega um animismo e um valor simbólico com as personagens, sendo tanto um espaço íntimo, quanto um local de confinamento) e os momentos de movimento, deslocamento e fuga.


Observando esse recorte e, de forma mais holística, toda a produção da cineasta, parece que esse pêndulo entre claustrofobia e deriva surge, por vezes, no interior de um mesmo filme, como em Eu, Tu, Ele, Ela. Ou então, isto pode aparecer de forma isolada, em que cada filme representa mais uma característica do que a outra, como é o caso de Jeanne Dielman e Não é um Filme Caseiro, obras que se concentram na relação das mulheres com o ambiente doméstico. Já Os Encontros de Anna e Tenho Fome, Tenho Frio são filmes mais voltados ao ambiente externo, às viagens, fugas e derivas. Curiosamente, mesmo que em boa parte dos filmes de Akerman o ambiente doméstico seja claustrofóbico, há também uma busca por esse espaço, um desejo de retornar para a casa, para o lar. Ressalto que o "lar" é o espaço próprio, não a casa dos pais, a exemplo da personagem de Anna, que prefere dormir com a mãe em um hotel, ou das jovens de 18 anos que fogem do ambiente disciplinar.


A primeira fase de Eu, Tu, Ele, Ela acontece dentro de um apartamento. A personagem desfaz os cômodos pouco a pouco como forma de encarar o luto. Ela retira os móveis, escreve cartas repetidas vezes, come açúcar de forma compulsiva, fica em silêncio e retira suas roupas quase como etapas de um ritual de transformação – até o momento em que se cura e pode voltar a sair do confinamento. A casa funciona como um casulo para a metamorfose da personagem, como se houvesse um fim, uma morte, para o início de uma nova possibilidade de vida, e para uma nova fase da personagem no filme, que se passa num caminhão. Essa saída parece encerrar uma etapa, que é substituída pelo deslocamento, pela entrada na cidade, com luzes e elementos contrários ao minimalismo do quarto da primeira parte da narrativa.


Embora inicialmente não saibamos o destino da personagem (a casa da amante), ela parece estar à deriva, aberta às possibilidades e às experimentações – similar ao curta Tenho Fome, Tenho Frio, no qual as personagens interagem com figuras masculinas e “experimentam” o sexo. As cenas de sexo com os homens, tanto nos dois filmes citados como em Os Encontros de Anna, parecem adotar um tom trivial e corriqueiro, diferente do desejo pulsante e do afeto explícito presente nas cenas com mulheres. A terceira parte de Eu, Tu, Ele, Ela é um frenesi de sedução entre as personagens, além da polêmica cena final de sexo, registrada em plano sequência de aproximadamente 10 minutos. Em Tenho Fome, Tenho Frio e Os Encontros de Anna, o sexo com os homens também é algo externo, fora do campo afetivo – reservado à amiga de fuga no curta, e à mulher que Anna espera ansiosamente pela ligação no longa.


Em Jeanne Dielman, de certo modo, a presença masculina dos clientes da protagonista é aquilo que insere o externo (a Rua do Comércio indicada no título), dentro do apartamento. Como em Eu, Tu, Ele, Ela, o filme é dividido em três partes, cada dia da vida da personagem que leva sua rotina doméstica como se fosse uma operária de fábrica. O sexo que ela mantinha com marido falecido e os clientes também não parece ter grande importância para a personagem. O ato sexual com eles é uma etapa, um percurso para manter a casa e sua autonomia fora de um novo casamento. Em Jeanne Dielman, a casa não é um casulo, como em Eu, Tu, Ele, Ela, mas sim, é o lugar de habitação dessa mulher – e os momentos externos, fora de casa, são conflituosos, regados de ansiedade e de um tom programático, como os passeios que ela faz todos os dias com o filho em volta do quarteirão. Aqui, não se trata de um desejo de fugir ou vivenciar novas experiências, mas, de certa forma, é um jeito do filme estabelecer uma tensão e um choque entre o ambiente claustrofóbico e o externo. Tensão já existente desde o primeiro curta-metragem de sua carreira, Saute ma Ville, lançado em 1968, em que a personagem explode sua casa para explodir a cidade.


Em Não é um Filme Caseiro, esse pêndulo não carrega tanta violência, pois, embora a casa seja um lugar de confinamento, ela adota também uma característica de santuário, de lugar de eternização da mãe. O externo, marcado sobretudo pela distância entre mãe e filha, é contornado pela câmera de Chantal Akerman, que filma as conversas de vídeo com sua mãe, captando imagens em super zooms que quase “tocam” no rosto de Natalia Akerman e criam texturas de afeto. A cumplicidade entre elas, que aparece em Os Encontros de Anna, está presente nesse último filme, que apazigua a relação entre o dentro e o fora, entre a claustrofobia e a fuga, tão elaborada ao longo de seus filmes.


Ao olharmos para este último filme de sua carreira, em perspectiva com os anteriores, percebemos aquilo que Bernardet descreveu sobre a política dos autores: uma unidade autoral, uma matriz que se repetiu e reapareceu ao longo das obras, sendo cada vez mais elaborada. Em Não é um Filme Caseiro, há um lugar de afeto, memória e encontro, diferente do caráter alienante e expropriante que a casa adquire em alguns de seus filmes, e como é representado em Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles. Essa transformação não se trata de uma ruptura, mas sim revela uma continuidade na produção da diretora, que, evidenciando uma relação mais íntima e afetiva com o espaço, amplia a forma como ele é explorado em sua obra.


 

[1] Sobre esse tema, indicamos a longa pesquisa de Roberta Veiga (2019) sobre a relação dos filmes de Akerman com a figura materna.

 

Referências

ARAÚJO SILVA, Mateus. “Fotograma comentado - Amor de filha (Toute une nuit, 1982)”. Devires – cinema e humanidades / Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), v.7, n.1, 2010.


BERNARDET, Jean-Claude. O autor no cinema. São Paulo: Brasiliense: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.


MARTIN, Angela. ‘‘Chantal Akerman’s Films”. Feminist Review, no. 3, 1979.


VEIGA, Roberta. “Imagens que sei delas: ensaio e feminismo no cinema de Varda, Akerman e Kawase”. In HOLANDA, Karla (org), Mulheres de cinema, Rio de Janeiro: Numa, 2019.


MARCHIORI DA SILVA, Natália. O cinema de Chantal Akerman: estilo e claustrofobia em Saute ma ville (1968) e Jeanne Dielman 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975). 2020. Dissertação (Mestrado em Imagem e Som) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/20.500.14289/13957.

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