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PARA O MUNDO!

por Crounel Marins



“Para o mundo!” era uma expressão muito usada por meu pai quando tirava fotografia com algum grupo. Podia ser com familiares, amigos ou grupos de pessoas que sequer entendiam o que ele falava, no caso de fãs estrangeiros, por exemplo. Na verdade, ele podia dizer isso inclusive quando não era o maior destaque nas fotos. Era raro, mas podia acontecer. Afinal, tem gente que faz questão de dar a primeira palavra, outros preferem dar a última. Meu pai não tinha dúvidas, preferia dar as duas!


Escrevo este texto sobre as viagens internacionais que fiz com meu pai com múltiplas intenções. Para começar, acredito serem narrativas saborosas, que por si só valem a pena ser contadas. Um objetivo mais sério, no entanto, é desconstruir um mito, o de que ele era muito mais reconhecido fora do Brasil do que no seu próprio país. Sim, ele era bem recebido em todo país estrangeiro para o qual ia por conta da sua obra, por vezes de maneira surpreendente, pois parece estranho um brasileiro chamar mais atenção do que estrelas do próprio país, particularmente dos considerados “mais avançados”. Por algumas vezes presenciei isso! Mas era normalmente uma situação de nicho, um festival de cinema fantástico, um evento especial sobre a obra dele, coisas assim. Fora do núcleo, andando pelas cidades, ele era uma pessoa como as outras, mesmo com uma figura um tanto estranha, as unhas proeminentes e alguns hábitos que podiam chamar a atenção. Isso não acontecia no Brasil, onde, independente da cidade, capital ou interior, dificilmente ficava muito tempo sem ser interrompido por alguém querendo tirar uma foto, receber um autógrafo ou coisa assim. Até numa praia brasileira, apenas de calção, por onde passava gerava murmúrios do tipo: “Olha ali o Zé do Caixão!” Quando eu imaginava, num filme dele, uma cena com seu sombrio personagem desnudo tomando uma caipirinha sentado na areia, penso: “Não tem o menor sentido!” Mas explicar para o fã brasileiro que havia uma grande diferença entre o personagem Zé do Caixão e o cineasta José Mojica Marins não era fácil. E, normalmente, não valia a pena.


A verdade é que ele, nas vestes do Zé do Caixão, já fazia parte da cultura nacional. Muita gente que hoje tem 50, 60 ou 70 anos cresceu no Brasil adorando assistir seus programas de TV com histórias de terror, e mesmo seus filmes clássicos das décadas de 60 ou 70. Já no exterior, quem o conhecia o amava como um dos grandes mestres da cinematografia de terror em todos os tempos, mas a maioria não sabia quem ele era. O Brasil não é um colonizador cultural, muito pelo contrário. Talvez possamos fazer uma exceção para o futebol, para o Carnaval, mas para a cinematografia, ainda somos exóticos produtores sediados em nossa capital, Buenos Aires!


Mesmo sendo uma questão de nicho, a forma como ele era recebido em qualquer país por onde passava chamava atenção. A mídia sempre privilegiava reportagens com ele, alguns ícones mundiais por vezes apareciam para saudá-lo e não me faltaram testemunhos que o colocassem no nível dos grandes patrimônios artísticos do planeta. Sem dúvida, um feito notável!


Por fim, escrever este texto perfaz a dupla função de recordar momentos muito especiais na minha vida e mitigar a saudade, com a vívida sensação de estar, novamente, no convívio com meu pai, naquilo que a memória ainda preserva. Nesse ponto, confesso que não me lembro de alguns detalhes, nomes de hotéis ou mesmo de eventos, posições exatas das pessoas com as quais nos relacionamos, e, não duvido, posso até confundir o local onde um fato inusitado ocorreu. Mas é muito presente em mim a forma como, a cada viagem, a relação entre pai e filho se delineava, já que muitos entrelaçamentos cotidianos ficavam, por semanas, a milhares e milhares de quilômetros, no Brasil.


A PRIMEIRA VEZ

Nossa primeira viagem internacional conjunta foi no final de 1994, entre outubro e novembro, para os EUA. Fomos para Nova Iorque, mas o destino mesmo era Nova Jersey, que fica a menos de 20 minutos de carro da “Big Apple”, caso não haja trânsito (quase impossível durante o dia). Seria uma convenção de cinema fantástico, em um grande hotel da cidade.


Meu pai tinha sido reapresentado para os ianques poucos anos antes, por obra do fã e amigo, o talentoso jornalista André Barcinski, que vivia nos EUA e tinha levado alguns filmes para serem lançados em VHS pela “Something Weird”, marca ligada ao gênero “Exploitation Cinema”. Eu ia com ele para, além de acompanhá-lo, ajudar na tradução para entrevistas e sessões de autógrafos. Meu pai, é bom dizer, tinha enorme dificuldade com qualquer língua falada. Não entro no mérito do assunto, mas sempre considerei que ele foi educado da maneira errada, e poucas pessoas tinham a coragem de tentar corrigi-lo. Para imaginar, ele tinha dificuldade de falar palavras terminadas em “on”. Som, marrom, champignon viravam, na boca dele, “são”, “marrão” e “champinhão”. Até um dos meus filhos, seu neto, o Miron, virava “Mirão”! Imagine-se então o inglês. Até coisas simples, como “Nova Iorque”, virava “Neva Iorque”! Eu brincava, dizendo que ele havia conhecido a cidade no inverno, mas o fato é que ele tinha algumas dificuldades fonéticas mesmo. O problema é que, no tocante ao inglês, eu não ia muito mais longe do que ele.


Confesso que o inglês me é um grande desafio até hoje. Desde aquela época eu já lia fluentemente, até falava um tanto, mas tinha (e tenho) dificuldade para entender. Talvez por nunca ter me preocupado no entendimento de músicas em inglês, eu já tinha essa estranha peculiaridade. Falava melhor que muita gente que havia estudado mais do que eu, mas entendia pouco, tinha que pedir a todo momento que falassem mais devagar. Em suma, estava bastante inseguro naquela viagem!


Pior do que a parte linguística era a parte financeira. Lembro que fomos com baixa provisão de dólares, ele não estava numa boa situação (quase nunca estava, nesse sentido) e eu era um jovem acadêmico em início de carreira como servidor federal na Educação, numa época bastante complicada para essas carreiras, o governo de Fernando Collor de Mello. Para o meu pai, uma situação normal, para mim uma contínua ameaça, ficar sem dinheiro longe do Brasil!


Chegando em Nova Iorque deixei meu pai no hotel para descansar e, mesmo com sua contrariedade, saí para conhecer a cidade, prometendo voltar logo. Conhecia, então, uma peculiaridade do meu pai no exterior, mesmo quando não estava cansado como naquela chegada. Ele não gostava de ficar andando, apreciando a arquitetura, indo a museus, conhecendo paisagens carimbadas nos guias turísticos. Fazia exceção no que chamava de “coisas estranhas”. Podia ser um cemitério em especial, o cenário de um crime histórico, algo ligado ao cinema e artes cênicas (como a Broadway), e parava por aí. Andei uma distância razoável, queria ver a “rua dos brasileiros”, que na verdade é um pequeno trecho da 46th, e passar pelo Times Square. Logo voltei para o hotel, descansamos um tanto e nos preparamos para a principal missão, o evento em New Jersey.


O traslado foi tranquilo, e logo nos encontrávamos hospedados no hotel que sediava o congresso. Ali dava para ter uma noção do “modo americano de ser”. Um espaço gigantesco, para os nossos padrões, era quase um mundo à parte, com muitos expositores, milhares de fãs, impossível imaginar um evento de nicho assim no Brasil da época. Ali meu pai sentiu-se em casa, sendo abordado a todo momento para fotos e autógrafos. Eu fazia o que podia, respondendo perguntas que não entendia direito, cuidando do conforto do meu pai, e tornando-me apto para qualquer concurso de soletração em inglês. Larry: L-A-R-R-Y; John: J-O-H-N; Schwarzenegger:... Não, ninguém da família dele foi, para minha sorte. Houve, entre centenas de nomes, um ou outro mais estranho, mas a expressiva maioria era ainda mais homogênea que no Brasil. Meu pai acabou decorando alguns nomes mais comuns, como Peter, Sofia (às vezes com “ph”), Emma e outros.


O tamanho da fila para coletar o autógrafo dele me surpreendeu. Sempre com dezenas de pessoas que, pacientemente, suportavam nossa relativa lentidão. Dava até pena de alguns expositores, que por longos períodos ficavam ali, sem interessados. Mesmo estes, por vezes deixavam os seus materiais para virem tirar foto com meu pai. Logo percebi o tamanho da figura dele para aquela gente. Por sua vez meu pai se animava, principalmente quando aparecia do nada uma atriz, sempre meio desnuda, com atributos corporais bem salientes, pedindo um abraço apertado para registrar o encontro. Comigo, rolava um aperto de mão, às vezes...


Algo insólito ocorreu numa noite, em que haveria um baile à fantasia no próprio hotel. Meu pai não se interessou, preferiu descansar, mas eu estava curioso, e fui ver. Dráculas, Frankensteins e múmias diversas desfilavam no salão, junto com alguns “Zés do Caixão”, ou “Coffin Joe”s, como preferiam. Capas, cartolas e unhas grandes concorriam com dentes caninos afiados e faixas de mumificação. Minha vertente engenheira (ou contadora) não resistiu, passei a conferir quantidades. E, para minha surpresa, tirando das contas os genéricos (monstros diversos), o número de “Zés” suplantava Múmias, Frankensteins e outros personagens específicos. Encantado, subi para o apartamento, e perguntei para meu pai se ele não queria conferir. Mas ele disse que não, preferia descansar. Eu bem poderia ter dito que algumas daquelas meninas que tiraram foto com ele estavam no baile, mas deixei como estava.


Um encontro marcou-me de forma especial, foi com Mike Vraney, o fundador da Something Weird, que comercializava VHSs dos nossos filmes. Com toda a paciência pela minha dificuldade de compreensão, ele explicou-me sobre o significado do meu pai para o gênero, num contexto mundial, e pediu-me que tomasse cuidado com sua obra. Eu já sabia que os filmes não tinham cópias com as exigências de qualidade da época, mas só viria a saber depois que nem os direitos das obras eram do meu pai. Mas aquela conversa, e tudo o que eu vi na primeira viagem internacional que fizemos juntos, abriu-me os olhos para o que viria a fazer nas décadas seguintes, adquirir os direitos e procurar maneiras de preservar, no geral, e recuperar obras específicas, dentro das exigências modernas da mídia digital.


Estava chegando o momento de ir embora, e eu sabia que teríamos que pagar nosso consumo no hotel. O que me assustava é que meu pai não fazia contas e usava muito o telefone para conversar com pessoas aqui no Brasil. Na época não era algo tão tranquilo, e podia ser custoso. Eu, por exemplo, fazia raras ligações, com dois ou três minutos; ele, várias por dia, algumas com mais de vinte minutos. Na noite anterior à saída de New Jersey eu estava falando isso com ele, e precisávamos jantar. Consegui que ele se preocupasse também, e percebemos que num bar, ao pedir cerveja, numa caneca grande, forneciam uma generosa porção de amendoins como brinde. Foi nosso jantar, cerveja e amendoim, que por sorte nos repunham quando viam que acabava.


No dia seguinte, ainda com receio, fui pagar a conta. Surpresa, a organização do evento, já não presente para podermos agradecer, havia pago tudo. Falei com meu pai, demos risada e já começamos a fazer os planos de ir às compras em Nova Iorque com o dinheiro que havia sobrado, umas poucas centenas de dólares.


Nas viagens, meu pai adorava acumular coisas. Se saía algo dele em algum jornal, queria levar cinco; de catálogos gratuitos, pelo menos dez. Em restaurantes, queria levar os cardápios. E nem precisava ser restaurante caro, mas ele dizia que faria um museu com os lugares que havia frequentado. Normalmente não negavam isso para ele, eu explicava que era uma pessoa famosa no Brasil, e ficavam interessados nessa exposição gratuita dos seus estabelecimentos!


Juntando tudo isso com as compras que fizemos, na época havia coisas bem baratas e de qualidade em Nova Iorque, estimo que voltaríamos com o triplo ou quádruplo de bagagem. Só diminuiu um pouco porque deixamos uma, das grandes, esquecida no hotel. Tenho que assumir a culpa, pois sabendo que ele não controlaria tudo, contava as bagagens. Eram sete. Mas na última tarde na cidade fizemos mais compras, e então tínhamos oito. Contudo, na minha cabeça continuavam sete. Conclusão, uma das bagagens ficou no hotel, nunca mais a recuperamos!


Chegando no aeroporto, não tínhamos muitas malas, algumas coisas estavam em sacolas grandes, os sete volumes! No check-in a moça me faz uma cara feia e, rispidamente, dá-me ordens, que não entendi pela rapidez com que foi falado. Sei que tive que sair de lado, e fiquei um pouco perdido. Excesso de peso? Realmente, não sabia o que fazer, e nessas horas é bom estar ao lado de um astro internacional como meu pai. Um homem distinto se aproximou e falou para ele: “Mojica, que surpresa! Tem algum problema?” Até então meu pai nem notara o tamanho do apuro que eu passava, e eu não queria deixá-lo nervoso. Por isso, fui eu que falei ao homem, uma figura bem conhecida, o jornalista brasileiro Rubens Ewald Filho. Ele explicou-me, pois ouvira o que a atendente disse, que o problema não era o peso, cada passageiro só tinha direito a duas bagagens, e nós estávamos com sete! A partir daí, foi só unir, duas a duas, e embarcamos de volta ao Brasil.


Só aos poucos assimilei o que tinha aprendido, sobre vários pontos de vista. Algumas diferenças entre o comportamento de brasileiros e pessoas de outros lugares, “protocolos” para viagens com meu pai e, o mais importante, a significância do trabalho dele, não mais de forma apenas regional, brasileira, mas como um patrimônio mundial. Nada mal para um brasileiro de pouca instrução, pouco dinheiro e recursos, mas com muita, muita criatividade e capacidade de empreendimento artístico!


DO NORTE AO SUL DO NORTE

Pode-se dizer que percorri a América do Norte com meu pai. Na verdade, duas cidades por país, num continente de apenas três países. As outras duas viagens que fiz a essa parte do planeta foram, obviamente, ao Canadá e ao México. A primeira em 2009, a segunda, e última viagem internacional profissional que fizemos juntos, no final de 2013. Dois países bem distintos dos EUA em muitos aspectos, mas semelhantes na acolhida dos fãs, que me deixaram indeléveis recordações.


No Canadá fomos para Montreal e Toronto, conhecendo as duas faces linguísticas desse país multicultural e politicamente ativo. Lembro-me de manifestações públicas que atraíram a atenção do meu pai. Expliquei algumas questões políticas do país, mas ele se interessava mais pelas manifestações em si, menos pelos motivos. Na cabeça dele, eu já sabia, sempre figurava a possibilidade de algum argumento para uma boa história.


Em Montreal fomos para o prestigioso Festival “Fantasia”, ainda na esteira do lançamento de “Encarnação do Demônio”, e tivemos alguns encontros interessantes. Reencontramos o amigo Scott Gabbey, editor da revista Ultraviolent, um jovem que tínhamos conhecido em 2002, quando veio para o Brasil com o vocalista Killjoy, da banda Necropaghia. Killjoy, que carinhosamente chamávamos de “vômito” (por conta de uma conta dele de email: blackbloodvomit), tinha acertado comigo de fazer um clip para um novo álbum da banda, e tinha trazido Scott, quase um garoto, para cobrir as gravações. Além disso, Scott estava interessado em escrever um livro sobre meu pai, livro inconcluso até hoje, em 2024, mas que motivou alguns retornos dele ao Brasil, muitas entrevistas e momentos de confraternização bem animados. Meu pai gostava muito dele, a quem inicialmente chamou de ET, pois estava careca quando nos conhecemos. Ter um apelido público por parte do meu pai não era para qualquer um, significava um reconhecimento, um apreço especial.


Entretanto, não foi com Scott o encontro mais interessante, foi com uma performer, a atriz e diretora americana Melantha Blackthorne. Conhecida por vários trabalhos no gênero de terror, particularmente pela personagem Countess Bathoria (Condessa Bathoria), Melantha era uma jovem mulher de aparência impressionante, bela e voluptuosa. Tínhamos contato por e-mail, ela era uma grande fã do meu pai e havia tatuado uma imagem do Zé do Caixão num braço. A reprodução era extremamente realista, e tinha sido feita por um conceituado tatuador novaiorquino. Nem é preciso dizer que meu pai, por toda a nossa viagem, não deixava de pegar naquele belo braço, procurando detalhes ainda não vistos e, claro, desfrutando daquele contato inusitado. Melantha nos acompanhou na sequência da viagem, para Toronto, a convite de Rodrigo Gudiño, editor da revista Rue Morgue, amigo de Melantha.


Em Montreal “Encarnação do Demônio” ganhou segundo lugar, mas meu pai continuou sendo tratado como um verdadeiro campeão na sequência para o Canadá britânico. Em Toronto ficamos hospedados num simpático hotel, o Gladstone Hotel, com a peculiaridade de que cada quarto era especial, o design dos quartos sendo únicos, e por conta de artistas diferentes. É claro, ficar nesses quartos exigia certos cuidados.

Um desses cuidados era o de não fumar, e meu pai, como é de conhecimento geral, era um fumante inveterado. Com preguiça para descer e fumar na rua, começou a fumar escondido de mim, jogando as bitucas na privada. Como se o cheiro pudesse ser disfarçado! Fui chamado pela administração do prédio, que tinha sido alertada pelo pessoal da limpeza dos quartos. Fui advertido que, numa próxima vez, haveria uma multa (acho que de US$ 100.00) e, se houvesse uma terceira, seríamos expulsos do hotel. Sabendo da dificuldade que meu pai tinha para conter esse vício (em todas as nossas viagens eu era um fumante passivo, e minhas roupas, ao voltar para casa, precisavam ser criteriosamente lavadas para tirar o cheiro de cigarro!), aumentei o valor da multa umas dez vezes. Sabia que ele era mais sensível ao bolso do que à possibilidade de expulsão, que certamente procuraria romantizar. Funcionou!


A homenagem com projeção do seu filme foi em um cinema enorme, o que nos garantiu uma boa vendagem de souvenirs, como revistas, livros, cards para autógrafos... Mas o interessante, ao menos para mim, ocorreu na mesa para resposta a perguntas. Meu inglês havia melhorado bastante, mas meu problema para entendimento de uma língua não latina continuava. Eu era facilmente entendido, e muitas vezes elogiado pelo vocabulário e estruturação da fala, mas o fato é que por vezes não captava o sentido das perguntas. Por isso aceitei quando um português se adiantou para traduzir as respostas do meu pai para o público. O inusitado é que ele não entendia o que meu pai dizia! Meu pai tinha um vocabulário foneticamente estranho, como já comentei. Aliado a isso, utilizava algumas gírias antigas, palavras aparentemente inventadas, e outras particularidades que, apesar de serem facilmente compreensíveis para brasileiros, causavam estranheza até para portugueses. A conversação ficava esquisita, pois meu pai falava, ele me pedia explicações e só depois fazia a tradução, num inglês perfeito. O meu não era tão perfeito, mas obviamente eu falava “mojiquês” melhor do que qualquer um, portanto mudamos a ordem. As pessoas perguntavam, se eu tinha dúvidas consultava o português, falava com meu pai, que respondia, e aí eu traduzia. Funcionou melhor, e algumas vezes, após a tradução, havia aplausos, por conta do conteúdo da resposta dada por meu pai. Normalmente ele era bombástico, procurava falar de modo a impressionar, com imagens marcantes e interpretação no que dizia. Acho que só não foi muito bem-sucedido ao falar das coisas boas do Brasil. Como sempre, citou a beleza da mulher brasileira. A plateia, com muitas mulheres, ou por considerar a fala machista, ou até por ficarem enciumadas, demonstrou certa frieza depois da minha tradução!


Num dos nossos voos canadenses, um rapaz cabeludo veio cumprimentar efusivamente meu pai. Perguntou o que fazíamos lá, de onde vínhamos, para onde íamos, e meu pai pareceu achá-lo um pouco petulante. Mas foi solícito, como lhe era normal. Só depois do rapaz voltar ao seu assento que pude dizer: “Pai, esse é um dos Ramones (acho que o Johnny)”. Meu pai sabia que, entre seus fãs internacionais, os “Ramão” eram dos mais famosos. Aí voltou a olhar para o rapaz e estendeu o polegar com a longa unha, em sinal de positivo para ele!


A visita ao Canadá foi boa, mas ao México foi melhor! Meu pai era entusiasta da cultura mexicana, conseguia entender e ser entendido com razoável precisão e possuía muitas referências daquele país. Não à toa, seu nome, “José Mojica”, é uma homenagem a um famoso cantor mexicano, que se tornou padre mas continuou cantando músicas não religiosas. A enorme popularidade mundial, particularmente latina, desse cantor contribui para justificar a profusão de “Josés Mojicas” encontráveis no mundo, incluindo meu pai!


Desembarcamos na cidade do México numa cena bem cotidiana. Meu pai junto a mim, que estava todo embaraçado com as diversas malas, pois ele, com o pretexto das unhas, nada carregava. De repente, nossos anfitriões nos viram (o “nos” aqui é um tanto exagerado, eles viram meu pai) e começaram a acenar. Meu pai foi em direção a eles, que o abraçavam efusivamente, com calor latino. Não tenho dúvidas, paro e não dou mais um passo! Tinha conversado com os mexicanos por um bom tempo, por e-mail, e agora simplesmente me ignoravam, com muitas malas e malotes! Não sei quanto tempo aquilo durou, mas acabaram vindo em minha direção, perguntando se eu precisava de ajuda. Claro que eu precisava!


Era cedo, o check-in do Hotel seria bem mais tarde, poderíamos até guardar as malas lá, mas adentrar ao quarto, só algumas horas depois. Perguntaram ao meu pai se ele queria alguma coisa, acho que pensavam num café da manhã, coisa assim. Foi instantâneo: “Quero uma ‘margarita’!” Eu fiquei constrangido, uma marguerita logo de manhã! Mas os mexicanos viram aquilo com naturalidade, e disseram que poderíamos passear um pouco, antes do horário de entrar no hotel. E meu pai, parecendo que estava num programa de auditório, daqueles em que o convidado podia realizar desejos, disse: “Poderíamos ver uns mariachi!”. Fiz uma expressão de reprovação, mas os mexicanos logo disseram que sim, havia mariachis em uma praça não muito longe, e poderíamos ir até lá, depois de desfrutarmos a “margarita”!!!


Difícil imaginar povo mais parecido com o brasileiro do que o mexicano. Culturas muito diferentes, mas a forma de lidar com as pessoas, o sangue quente, mas os gestos acolhedores, o México bem poderia ser vizinho geográfico do Brasil. Meu pai ria e chorava como criança, emocionado, feliz por estar ali. Mesmo com os problemas tão óbvios de uma megalópole como a Cidade do México, o trânsito absurdo (jamais pensei haver um pior que o de São Paulo), a relativa poluição do ar por conta do excesso de veículos, a violência institucionalizada (nesse sentido, mais parecido com o Rio de Janeiro), a cidade tinha seus atrativos inegáveis. Que ficariam para depois, pois nosso destino principal era a pequena cidade de Tralpujahua, um destino na rota dos “pueblos mágicos” mexicanos. Lá haveria um festival de cinema fantástico, e meu pai, poderíamos dizer, era o principal convidado. O “poderíamos”, nesse caso, deixo por conta da presença de uma celebridade mexicana, o neto do famoso lutador de lucha libre “El Santo”, que lutou por mais de 50 anos nos ringues daquele país. No México esses lutadores famosos ainda são cultuados, pois os espetáculos dessa modalidade ainda são atuais, e poderiam ser comparados com as touradas espanholas ou outras formas de arte “politicamente incorretas”!


Realmente, acho muito mais apropriado chamar Tralpujahua de pueblo do que de cidade. Aliás, acho que falta uma palavra assim no Brasil, para nomear cidadezinhas como aquela. Em particular, Tralpujahua é a cidade do Papai Noel, do Natal, com enfeites natalinos sendo produzidos durante o ano todo. Sua tradição, no entanto, é diversificadamente rica, abrigando até uma antiga mina de ouro, com muitas histórias interessantes. Mesmo meu pai, que não gostava desse tipo de visita turística, ficou impressionado e curioso. Andar naquelas ruas pedregosas lhe fez bem, acho que foi algo como recordar da infância; a cidade parecia ter parado numa espécie de limbo temporal! Mas não faltavam as intemporais margueritas, o que lhe agradava muito mais!


Terminada nossa estada em Tralpujahua voltamos para a Cidade do México. Mais margueritas, mais mariachis e alguns grilos fritos, para variar na gastronomia. Meu pai sempre gostou de experiências novas, lembro-me da minha infância, ele chegando tarde da noite com alguma carne de caça ou, ao menos, não tradicional nas mesas cotidianas. Paca, capivara, tubarão e rã, entre elas. Mas grilo (que não é, exatamente, uma “carne”) ele nunca tinha comido.


Nunca vi filas tão grandes para a compra dos nossos produtos e obtenção de autógrafos e fotos. Estranhou-me a popularidade do personagem naquele país, e disseram-me que os filmes do meu pai passavam há muito tempo na TV mexicana. Acabei sem fazer uma pesquisa mais profunda sobre isso, já que meu pai não se lembrava de negociações antigas com o México. Mas, como ele normalmente não era o detentor dos direitos de comercialização, apenas conjecturei que os negócios haviam sido legítimos. Naquela época eu já tinha adquirido os direitos de alguns dos principais filmes dele, garimpando com alguns produtores que, ou tinham produzido originalmente ou tinham comprado os direitos dele. Mas, sobre negociações nas décadas anteriores nem ele conhecia muito. O fato, comprovado pelas centenas de pessoas naquelas filas, era que o personagem tinha um potencial internacional pouco explorado por décadas, visto a carência relativa de convites para viagens ao exterior que ele teve nos anos 80 e 90. Sem dúvidas, sua imagem tinha ganhado um revival importante, após as iniciativas do André Barcinski e a conclusão do seu longa-metragem “Encarnação do Demônio”, último da trilogia fílmica do Zé do Caixão.


Tivemos momentos muito interessantes no México. Em Tralpujahua o neto do “El Santo” declarou-se fã do meu pai, e pediu para que ele fosse à sua loja na Cidade do México, para receber alguns presentes. Fomos, recebemos um livro e uma máscara, cópia da usada pelo avô. Na megalópole mexicana ainda visitamos a “Ilha das Bonecas”, no complexo de ilhotas de Xochimilco, com bonecas despedaçadas, e ditas assombradas, penduradas por toda parte. O cenário bem poderia ser de alguma alucinação normalmente sofrida pelo Zé do Caixão, e meu pai considerou a possibilidade de volta àquele país para registrar aquela “coisa estranha”, e, obviamente, desfrutar de tantas outras particularidades daquele povo que, por vezes, o faziam chorar. Acho que foi nossa viagem mais emocional, o que ficou mais arraigado na minha memória por ter sido a última internacional, no sentido profissional.


VISITAS À VELHA SENHORA

A maior parte das viagens internacionais que fizemos foi para a Europa, foram duas vezes para a Espanha, e nos demais países nos quais estivemos, uma cada: Portugal, Itália, França e Holanda. Foram tantas as situações vividas que contá-las todas faria deste texto um pequeno livro. Por isso, detenho-me em algumas, talvez as que ficaram mais marcadas na memória. Mas penso que meu pai concordaria com a seleção!


Nossa primeira visita à Europa foi a convite de uma produtora brasileira na França, Paula Vandenbussche, isso em 2002. Fomos para um Festival em Toulouse, e também passamos na Cinématheque Française, em Paris. Confesso que estava um pouco apreensivo, sem saber como seria a receptividade dos franceses à obra do meu pai. Lembro-me do Jô Soares, que sempre comentava que a Cahiers du Cinéma, cultuada revista francesa, enaltecia o “À Meia-noite levarei sua Alma” como um dos grandes filmes da história do cinema, e também que, em 1974, meu pai havia ganhado o prêmio da revista L’Écran Fantastique, que fez alguns críticos nacionais torcerem o nariz e outros reverem suas posições sobre a obra dele. Mas já havia passado muito tempo, e meu pai nada tinha produzido de impactante nas últimas décadas. É bem verdade que o nome dele voltava a estar em ascendência, com o lançamento em VHS e DVD nos Estados Unidos, e algumas negociações com os filmes antigos na Europa. Mas não seria pouco, visto a fama dos franceses como soberbos demais?


Logo vi que não. Reverenciado por onde passava, mais parecia que estreava um novo filme. O ápice ocorreu na própria Cinémathèque Française, de onde se tem uma boa vista da Torre Eiffel, que nos faz lembrar ser a França uma referência tanto técnica quanto artística. Um diretor (acho que o diretor-presidente) dessa cinemateca conversou comigo um bom tempo, falando da importância da obra do meu pai para o mundo. Não se referia ao nicho de horror, referia-se ao cinema, à sétima arte, simplesmente. Perguntou sobre o grau de conservação dos negativos e de outros materiais dos filmes mais famosos. Eu conhecia pouco daquilo, pois foi só naquele ano que meu pai tinha pedido para mim e para minha irmã Liz que cuidássemos com exclusividade dos seus negócios. Havia tido decepções com alguns empresários, sabia que não tinha algumas habilidades negociais fundamentais e dizia estar cansado de ter a vida desestruturada que vinha tendo, no sentido material. Por isso, não consegui dar uma resposta satisfatória ao gestor francês, pelo menos não satisfatória para mim.


Ele disse que conhecia um pouco do Brasil, e da dificuldade passada por artistas brasileiros. E sendo assim, ofereceu a Cinémathèque para que fosse garantida essa conservação, só teríamos que mandar o material, e ele confessou que ficaria honrado em garantir para as gerações seguintes que essas obras não fossem perdidas. Assim como ocorrera nos EUA, senti responsabilidade de garantir isso, e no Brasil começaria a buscar informações sobre o estado dos materiais existentes, algo que consumiria vários anos e me traria muitas surpresas, principalmente descobrir que os direitos de quase todas as obras em que meu pai atuara como diretor, ator, ou mesmo produtor, não eram dele.


No mesmo ano de 2002 ainda fizemos outra viagem, para a Espanha, com intermediação da produtora que nos levou à França. Foi uma viagem muito especial, para San Sebastián, no País Basco, porque, além de mim, iria junto minha irmã Liz, que pela primeira vez apresentaria sua personagem, a LizVamp, fora do Brasil. Lembro-me de caminharmos do hotel para o local do evento junto a um grupo de repórteres, com visões mescladas da beleza da praia com a aparência rude dos policiais fortemente armados, visto a possibilidade de ataques terroristas ser constante naquela época. No salão do evento, tanto meu pai como a Liz foram honrados com uma recepção que não faria feio a qualquer artista hollywoodiano. Fora dos eventos, no entanto, éramos turistas normais, brasileiros em viagem de férias, talvez.


O cúmulo dessa “trivialidade” ocorreu quando eu e a Liz conhecemos, casualmente, uma brasileira, de nome Fátima, que havia ido para a Espanha com um espanhol, de nome Luiz, que ficara apaixonado por ela durante férias no Carnaval carioca. Típica história de Cinderela, ela mantinha poucas relações com o Brasil e reconheceu nosso sotaque. Disse que o marido tinha padarias, que era muito bem estabelecido lá, e que gostaria muito de nos levar para jantar. Aí contamos sobre os motivos de estarmos lá, e falamos sobre o festival de cinema, os personagens... Que ela não conhecesse a LizVamp, que mesmo no Brasil tinha poucos anos do lançamento, era compreensível, mas, sendo brasileira e não conhecer o Zé do Caixão! O fato é que ela não conhecia, mas disse que nosso pai seria bem-vindo para o jantar, e como não tínhamos atividade para a noite, topamos. Rodamos um bom tempo em direção a uma vilazinha de pescadores, para um restaurante de boa fama gastronômica. O Luiz era de conversa agradável e eu adorava falar em espanhol, língua com a qual sentia-me muito mais à vontade do que com o inglês. A Liz e a Fátima conversavam sobre o Brasil e sobre coisas de mulheres. Meu pai acabou sobrando no meio daqueles duetos, algo que raramente acontecia, e que o incomodava. Durante o jantar, uma série de incidentes, ele criticou um prato típico exótico (pescoço de um peixe) e atreveu-se a colocar açúcar em um bom vinho, pois gostava de vinhos suaves. O Luiz pareceu não gostar daquilo, mas explicamos que no Brasil era comum apreciar vinhos mais adocicados. Delicadamente ele aquiesceu. Mas meu pai continuava incomodado pela pouca atenção que recebia, e cismou que numa outra mesa havia dois homens com aparência estranha. Podiam até ser terroristas, segundo ele! Mas, fugindo à reação que seria esperada de alguém que julgasse estar próximo a terroristas, quando demos conta ele já estava junto àquela mesa, pedindo para tirar fotos deles! Foi embaraçoso, mas explicamos que ele era um cineasta, e que os julgara figuras humanas interessantes (omitimos a questão do terrorismo!)


O fato é que acabamos por rir muito daquela noite, e também de outras peripécias no País Basco. Eu estava orgulhoso dos dois, da forma como tinham sido tratados, e extremamente contente por estarmos os três juntos. Infelizmente isso só se repetiria mais uma vez, na tournée de lançamento de “Encarnação do Demônio”, em 2008.


Esse período começou em alto estilo, com uma apresentação do novo filme no Festival de Veneza daquele ano. O filme fora o resultado de uma obsessão do meu pai, por realizar ao menos uma trilogia para o personagem (houve época em que chegou a cogitar sete filmes tratando da história do Zé do Caixão e da sua alucinada procura pelo filho perfeito) e do empenho de dois cineastas e fãs dele, o roteirista e diretor Dennison Ramalho, e Paulo Sacramento, premiado como diretor e montador, cuja produtora assinava o “Encarnação”.


O filme foi exibido numa sessão especial, a “sessão da meia-noite”, nada mais apropriado para um filme sobre Zé do Caixão. A exibição impressionou a todos na grande sala, que estava lotada. Aplausos em pé, ao final, deram mostras da alta receptividade do filme. Durante os dias em que estivemos lá, também na companhia do Sacramento com sua esposa Moema, ouvíamos que houve mais gente naquela sessão do que em outras da mostra principal, e que seria justo que o filme concorresse aos maiores prêmios, ao invés de ser apenas um “bônus” do festival. Ali, no que se considera um evento do Grand Slam cinematográfico, meu pai não tinha sossego, e entre um Aperol Spritz e outro, dava autógrafos e tirava fotos, às vezes a pedido de celebridades!


Um encontro inusitado ocorreu numa noite, em que fomos abordados por duas simpáticas moças, que cumprimentaram meu pai, pediram autógrafos e fizeram comentários elogiosos para ele. Quando nos deixaram, perguntei sobre uma das moças: “Pai, o Sr. não viu quem é aquela moça?” (a mais sorridente). Ele: “Não”. Eu: “a Alice Braga”. Ele: “Quem?” Eu: “Alice Braga, a sobrinha da Sônia Braga”. Ele: “A Sônia eu conheço!” Aí fui lembrando filmes que ela tinha feito: “Cidade de Deus”, “Eu sou a Lenda”, com Will Smith... Aí ele reconheceu e ainda repreendeu-me: “Por que você não falou antes?”!!!


Esse era meu pai, um tanto desligado do mundo. Para alguns podia parecer soberba, ele não decorava nomes de forma alguma, errava outros foneticamente, mesmo brasileiros, mas não fazia por mal. Era um tanto preso ao passado, na sua infância de morador de um cinema, gerido por meus avós. Por isso seus heróis eram Charles Chaplin, Bela Lugosi, e para não omitir brasileiros, Carmen Miranda e Grande Otelo! Das antigas obras-primas, aí sim, a memória funcionava muito bem!


Saindo de Veneza fomos direto para Lisboa, para um Festival que estava na sua segunda edição, o MotelX, ou “Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa”. O Sacramento não foi, mas juntou-se a nós dois a Liz, que também tinha sido convidada. Novamente estaríamos juntos, os três! Além da exibição do “Encarnação” meu pai e a Liz dariam um workshop. Na verdade, meu pai deu pouco tempo de aula, deixando a maior parte do trabalho para a Liz, inclusive a produção de um curta-metragem, como produto final do evento. Assim, enquanto ela trabalhava, eu e ele ficávamos com nossos anfitriões, especialmente dedicados, e a todo momento saíamos para bebericar alguma coisa, como ele gostava. A Liz, claro, reclamou da desigualdade na distribuição das tarefas, mas ele dizia que ela era jovem, e que, portanto, tinha que trabalhar mais. Não se discute com pai!


Ficamos em um hotel que parecia um palacete antigo, com vários ambientes conectados por corredores estreitos e pequenas escadarias. No pátio, uma árvore que já tinha sido usada para enforcamentos. Apesar de não termos encontrado assombração, elas estavam por ali, tenho certeza! Ficamos de voltar, talvez para produzir um filme naquele cenário. Infelizmente não voltamos, e foi a última vez que viajamos os três, juntos, para alguma atividade profissional no exterior. Tanto eu quanto a Liz ainda faríamos algumas viagens com ele nesse sentido, mas ele não mais contaria com nós dois numa mesma viagem.


Ainda em 2008 voltei para a Espanha com meu pai, agora para Sitges. O festival nessa bela cidade praiana próxima a Barcelona é o que mais teve situações em que ele foi homenageado ou teve obras em exibição. Ele já tinha ido na década de 70 e voltava lá comigo. Em 2020, ano em que faleceu, foi homenageado em Sitges, e no lançamento de uma obra póstuma, “A Praga”, fui representar meu pai e o produtor e diretor Eugênio Puppo, isso em 2021. Lembro-me de caminhar com meu pai pelas ruas que levam ao porto, coalhado com lanchas e iates de todos os tamanhos. Naquele ano também tivemos a companhia da nossa representante internacional, Betina Goldman. Betina sempre fora fã inveterada do meu pai, e trabalhava com alguns filmes dele em uma empresa britânica quando a conheci (telefonicamente), em 2002. Quando fundou sua própria empresa eu já começara a adquirir os direitos de obras do meu pai que estavam com outros produtores, e não vi pessoa melhor para cuidar da nossa representação. Essa foi uma das poucas vezes que ela e meu pai encontraram-se no exterior; a maioria dos encontros foram mesmo no Brasil, em períodos de férias dela. Além da situação profissional, sempre teve prazer em estar do lado dele, conversar sobre sonhos de futuras produções ou sobre o que ele chamava de “coisas estranhas”.


Naquela viagem estávamos sempre os três juntos para refeições, pois eu e meu pai tínhamos ganhado generosos vouchers, que eram aceitos por muitos restaurantes da cidade. Na verdade, foram tantos que ainda tínhamos alguns de sobra quando chegou o momento da volta, e deixamos com a Betina, que ficaria em Sitges por mais alguns dias. Depois daquela viagem só voltaria para a Europa com meu pai quatro anos depois, em 2012, numa situação inusitada.


A viagem para Rotterdan, na Holanda, foi a única profissional não vinculada exclusivamente com o personagem Zé do Caixão, mas motivada pelo meu pai ser um representante da chamada “Boca do Lixo”, a região de São Paulo que abrigava cineastas independentes de vários gêneros, bang-bangs, pornochanchadas e outros, principalmente entre as décadas de 60 e 80. A região, em si, era um tanto “barra pesada”, nem tanto quanto hoje, com o drama dos viciados em crack que estão por ali, mas, como se diz, “não era para qualquer um”. Tinha que ter coragem!


Meu pai já apresentava alguns problemas mais sérios com a memória, mas apenas com a recente. Podia não lembrar o que tinha almoçado, ou que evento teria em duas horas, mas era capaz de contar, por horas, as situações mais inusitadas ocorridas com ele e com os amigos naquela região.


As expectativas dele, no entanto, foram frustradas, e acho que tive ali uma das maiores lições de História que meu pai me deu. Uma verdadeira História do cinema paulista. Observando os produtores e artistas convidados, ele não conteve a indignação: “Crô, esse pessoal não é da Boca do Lixo, é da Vila Madalena”. E ele estava realmente indignado. Citava vários nomes que deveriam estar lá, se o evento fosse realmente focado na Boca do Lixo. Qual a diferença? Ele explicou que o pessoal da Vila Madalena não era tão independente assim, alguns tinham recursos familiares, outros tinham benesses estatais, enfim, eram “filhinhos de papai” que haviam feito faculdade de cinema. Não eram da “Boca”, o pessoal que fazia filmes para o povo, com orçamentos baixos e com muita solidariedade para emprestarem rolos de filme, câmeras e material de iluminação entre si. “Cinema de verdade”, como ele costumava dizer!


Percebi algo bem interessante. Conforme passavam os dias, ele ia ganhando crédito, atraindo mais entrevistas e curiosos. Simplesmente estavam descobrindo o cineasta José Mojica Marins, mesmo além do Zé do Caixão. Para mim foi motivo de bastante contentamento, pois sempre defendi a tese de que Mojica era maior que Zé do Caixão, por mais que reconhecesse o fato de que o personagem poderia perdurar mais que o seu criador. Mesmo assim, seria um personagem. Mojica não, era de carne e osso, um gênio do cinema, dos poucos que, como eu gostava de dizer, “não nasceram com olhos, nasceram com lentes”!


Passar alguns dias naquela cidade tão multifacetada foi um grande prazer. Plana, era gostoso andar sem ter que subir e descer ladeiras, difícil para ele pela idade e pelo início de um desgaste físico maior, indesejável para mim por conta de algumas dezenas de quilos a mais!


Alternávamos as opções de gastronomia naquela cidade cosmopolita, mas mesmo assim, para beber ele queria o “vinho suave”, e na sobremesa, “pudim”, o nosso pudim de leite furadinho! “Pai”, dizia eu, “aqui não tem pudim”. “E tem o quê?” “Tem crème brulée, cheese cake, afpelstrudel...” “Se não tem pudim, escolhe alguma coisa para mim, você sabe o que eu gosto”. Aí eu dizia que ia escolher algo diferente, estranho, e ele se animava!


Assim, deixamos pela última vez, juntos, a Velha Senhora. Queria ter estado em outros pontos europeus com meu pai, ir para a Grécia ou para a Alemanha, mas não houve tempo. Ele passou por esses lugares com outras pessoas, e da mesma maneira sempre foi recebido com efusividade. Sua brasilidade era inegável, e se algum brasileiro merecia ter sido embaixador honorário do nosso país, esse era ele, tanto pelo que fez, reverenciado pelos maiores da sua área em todo o mundo, quanto pela forma como se referia ao nosso país. Gostava das “coisas estranhas” dos outros países, é verdade, mas não deixava de pensar e ansiar pela volta para a sua gente, para as suas redondezas, para o Brasil.


ENTRE HERMANOS

Há mais uma viagem internacional, com propósitos profissionais, que fizemos juntos, foi para Buenos Aires, em 2009. O estranho é que não me lembro do meu pai visitando outros países da América do Sul, mesmo sabendo que tem muitos fãs por aqui. Ou seja, acho que meu pai nunca foi ao Chile, ao Peru, ao Uruguai ou ao Equador. Por quê? Se ele fez várias viagens aos Estados Unidos, mais de uma dezena para a Europa, por que não viajou para nossos vizinhos, para estar entre hermanos?


Da mesma maneira que em outros países, fomos bem recebidos na Argentina. Havia uma boa quantidade de fãs, nossas vendas foram boas (essas vendas de “badulaques” sempre foram um parâmetro com o qual ele media o sucesso das viagens), nada que diferenciasse uma viagem para a Europa. Lembro-me de ter sido contatado por interessados em países sul-americanos. Mas as coisas não se concretizavam, as agendas não batiam, as condições financeiras eram obstáculos reais (pois, é claro, mesmo não ganhando dinheiro nas viagens, ele não queria pagar, até porque não tinha!), ou algo mais acontecia. Entretanto, vejo as coisas de maneira um tanto diferente.


Acredito que não seja um problema apenas do Brasil, mas do nosso continente. Valorizamos aqueles que nos colonizaram, mesmo considerando que hoje somos independentes, mais do que aqueles que sofreram como nós as agruras da colonização. E não falo do povo, falo das instituições, dos eventos mais dotados de recursos. Ainda miramos no Norte, por vezes até no Sul, mas na Austrália, na Nova Zelândia. Hoje temos o Mercosul, muito mais um conjunto de regras sobre comércio do que uma instituição que integre culturalmente os países que dele participam. E meu pai é um exemplo disso. Entre tantas saídas do país por conta da sua arte, somente uma para a região que mais poderia compreendê-la, a arte do improviso, da carência geradora de oportunidades; a arte que fala do povo, pelo povo, para o povo; a arte que não cala, que sonha, que fantasia. Meu pai esteve com um Tim Burton, com um Christopher Lee, com um Roger Corman. Mas imagino as conversas que teria com um Mario Vargas Llosa, com um Jorge Luis Borges...


Acho que se existirem outros planos de existência, esses hermanos acabarão se encontrando. O criativo atrai o criativo, buscando a superação do aqui e do agora. Do local, para o global, para o universal. Como diria meu pai: “Para o mundo”!

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