O Cinema em Close-Up, de Abbas Kiarostami
- 12 de dez. de 2024
- 9 min de leitura
por Rodrigo Azevedo
Todo aquele que é apaixonado por cinema carrega na memória alguma experiência marcante despertada por um filme. Às vezes, essa experiência vem de uma cena grandiosa, de uma imagem impactante ou da surpresa gerada pela reviravolta inesperada de um enredo bem desenvolvido. Outras vezes, somos marcados por um tipo diferente de experiência, por algo que se instala dentro de nós sem ser plenamente reconhecido. Para mim, foi assim com Close-Up (1990). Quando assisti o filme pela primeira vez, não entendi muito bem de onde vinha o encanto que aquela narrativa provocava. Ao fim da projeção, lembro-me de pegar um pedaço de papel e de conseguir rabiscar nele uma única observação: Que interessante onde o diretor coloca a câmera.
Anos mais tarde, quando o trabalho de Abbas Kiarostami se tornou meu objeto de estudo, deixei essa observação de lado. Haviam, afinal, muitos outros aspectos para se explorar na obra do diretor e mesmo na complexidade desse filme em particular, aspectos que ampliavam seu encanto, reforçavam seu mistério e dificultavam qualquer tentativa de defini-lo. De fato, um dos “pontos fortes desse filme”, como escreve Jean-Louis Comolli (2008), está no fato de que ele “desafia toda tentativa de descrição precisa”.
Acontece que, ao revisitar Close-Up recentemente, ao retornar até esse filme (tão) rebelde (quanto apaixonado) com o próprio cinema, o rabisco esquecido no papel voltou à minha mente; gostaria de retomá-lo neste texto, de observar como as escolhas de decupagem, os deslocamentos e os posicionamentos de câmera utilizados ao longo do filme balizam a relação entre o enredo e a linguagem, além de se constituírem como elementos essenciais para dar forma (e reformular) as relações humanas dispostas em cena e o nosso olhar sobre elas.
Nesse rumo, antes de mais nada, é preciso lembrar que a trama de Close-Up surge a partir de uma notícia real, de um crime peculiar que Kiarostami havia encontrado num caso jornal: o caso de Hossain Sabzian, um homem pobre que se fez passar pelo renomado cineasta Mohsen Makhmalbaf e, com isso, enganou uma família inteira, os Ahankhah, com a promessa de que eles iriam participar de sua próxima realização no cinema, de que protagonizariam seu próximo filme. Todavia, Close-Up não é uma simples dramatização ou um documentário aos moldes tradicionais que versa sobre o acontecido. Aqui, os personagens envolvidos no caso – Sabzian, o impostor, e a família que foi vítima do engano – não são os meros fornecedores de um caso extraordinário, ao contrário, eles são agentes ativos em toda a construção do filme, cuja espinha dorsal é o julgamento de Sabzian.
Todos os envolvidos aceitam ser gravados nesse julgamento, além de ceder seus depoimentos para a criação de um registro documental sobre o evento. Na verdade, eles aceitam fazer algo além. De forma curiosa, consentem em se unir e interpretar eles próprios em reconstituições de momentos ocorridos antes do derradeiro encontro com o juiz – mais especificamente, do momento em que Sabzian foi capturado e de quando ele conheceu a matriarca da família, que é quando o engodo começa.
Com isso, realidade e dramaturgia se entrelaçam de maneira inusitada. Ainda citando Comolli (2008), vale dizer que há, em Close-Up, uma série de deslizamentos e desdobramentos inesperados, onde o verdadeiro e o falso, o real e o simulacro, o passado e o presente, a ficção e o documentário, trocam suas marcas, alterando os códigos de linguagem com os quais estamos habituados, o que provoca os espectadores a desvendar não apenas os elementos da trama, mas os próprios mecanismos cinema; afinal, toda essa dinâmica evidencia que a relação ali traçada com a realidade é mediada por uma linguagem.
É importante, aliás, notar como a linguagem em Close-Up comove uma narrativa que nunca está em linha reta e, assim, sempre convoca a atenção sobre si mesma, sobre seus desvios; mais que isso, parece haver nela uma busca por criar espaços onde o espectador possa se envolver com a história de maneiras menos convencionais, para que testemunhe não apenas o drama principal, mas também o que se desenrola ao redor dele, fora do alcance imediato da narrativa, ou simplesmente fora de quadro, no silêncio da imagem. E é aqui que retomo a questão de que é interessante onde o diretor coloca a câmera, pois são essas escolhas que expressam tal dinâmica extraordinária entre trama e linguagem.
Desde o início de Close-Up, Kiarostami instaura uma sutil instabilidade na solidez da narrativa. O longa começa nos mostrando um jornalista que entra em um carro ao lado de soldados (muito bem) armados. A câmera segue esses personagens. No início, ela se mantém distante e os acompanha apenas com uma pan; logo em seguida, desloca-se para o capô do carro, onde permanecerá na maior parte da sequência inicial, mirando esses personagens, que agora habitam o interior do veículo. Assim, seguimos acompanhando-os; logo começamos a ouvir a conversa que se desenrola entre entre eles: num tom quase casual, descobrimos qual será o destino final daquela jornada – a prisão de Sabzian.
Diante disso, o norte narrativo parece bem estabelecido; como espectadores, temos um direcionamento da ação, um rumo para seguir a história. Contudo, ao longo do trajeto, reflexos e fragmentos do mundo exterior invadem a cena: o trânsito nas ruas e as interações cotidianas e aleatórias que ocorrem com os passageiros são dados que ampliam a ação que ali se desenrola e afastam-na de sua pureza narrativa mais objetiva. Para chegar até Sabzian, eles precisam, por exemplo, perguntar o caminho a um homem que está andando pelas ruas vendendo perus. O olhar atento à trivialidade traz um sabor cômico e inusitado, mas o que surge de mais forte nesses momentos é a impressão de que algo da realidade está se infiltrando ali, criando pequenos desvios do drama central.
Tais reflexos, aliás, aparecem literalmente no filme, como imagem, resultante direto do posicionamento da câmera, pois é, sobretudo, no parabrisa do carro, que os fragmentos do mundo exterior se insinuam como uma presença fantasmática que atravessa toda a cena – o que lhe confere uma qualidade documental, especialmente quando associada ao fato de que poucos são os cortes utilizados nesse momento; e, vale dizer que, mesmo quando há cortes, eles não buscam necessariamente retomar o drama do enredo: o próprio vendedor de perus, que sequer sabe informar o caminho até Sabzian, possui um plano dedicado a ele.
Mas a posição mais interessante adotada pela câmera ocorre no fim dessa sequência inicial, quando o carro finalmente chega à casa da família Ahankhah, onde Sabzian será capturado. Digo isso, pois a imagem simplesmente não segue tal ação; a câmera permanece fora da casa e passa a acompanhar o motorista do carro, que aguarda pacientemente o desenrolar da captura. Assim, a ação que aparentava ser o foco da narrativa é, ao menos por enquanto, deixada de lado. O que então acompanhamos, na verdade, talvez seja apenas a espera. Kiarostami, com esse movimento, nos apresenta uma quebra na estrutura tradicional do desenrolar desse tipo de história e insere ali um desvio muito caro ao seu cinema, um desvio que engendra um espaço de contemplação. E é a decisão por manter a câmera ali que proporciona tal movimento estético.
Nas cenas seguintes, o filme se alterna entre momentos que evocam um aspecto mais próximo do documentário e outros em que se mantém mais ligado à ficção. Quando recorre ao que Ivonete Pinto (2007) chama de "tratamento de ficção", quando o que predomina é a transparência narrativa, por mais que o filme esteja ancorado em um evento real, a câmera se vale da fluidez de decupagem que a ficção permite para explorar a relação entre os corpos e o espaço a partir de uma série de fatores, dentre eles, o viés emocional. O ápice disso talvez ocorra quando a câmera adota a perspectiva subjetiva de alguém, isto é, quando assume o ponto de vista de algum dos personagens. Ao fazer isso, ela se afasta do registro de um olhar mecânico, distante, incorpóreo e impessoal, e modula uma perspectiva humana, num movimento que performa, em essência, uma experiência dramática da imagem, enquanto gera um espaço de partilha entre o olhar dos espectadores e o olhar dos personagens.

Destaco algumas subjetivas: 1) a do motorista que já foi piloto que caça, quando ele vê uma dessas aeronaves cruzando o céu, enquanto espera pela captura de Sabzian – o que indica que há mais do que uma simples espera nessa sequência e que a aparente trivialidade do cotidiano pode guardar uma conexão com alguém cuja vida se torna nosso foco de atenção apenas por alguns minutos; 2) o motivo do engano da sra. Ahankhah, isto é, o momento em que ela vê um roteiro nas mãos de Sabzian; e 3) o momento em que Sabzian vê estranhos chegando na casa dos Ahankhah e desconfia que foi descoberto.

Já nas cenas mais próximas do que é possível classificar, ao menos de modo mais abrangente, como cinema documentário, pode-se perceber que Kiarostami evidentemente se esforça para tentar manter a típica aparência de captura da realidade que é encontrada (e esperada) nesse tipo de produção. Dizemos “aparência” pois o próprio diretor revelou que parte de tais cenas foram encenadas ou criadas apenas para a gravação do filme – em outras palavras, algumas dessas passagens não foram extraídas da realidade de modo imediato, na espontaneidade de um encontro sem intermediação entre a câmera e o mundo (Kiarostami, 2004).
Contudo, há uma atitude documentarista no trabalho do cineasta, e tal atitude não tenta promulgar-se neutra. Kiarostami, especialmente nas cenas que lidam diretamente com o julgamento de Sabzian, não se coloca como um simples observador imparcial da realidade. Longe disso, seu posicionamento é o de alguém que, conscientemente, se torna parte integrante daquele caso ao decidir levar sua câmera até os envolvidos, escolhendo o que mostrar e como mostrar. Trata-se do gesto de alguém que faz da realização cinematográfica um espaço de mediação ética.
E as escolhas de decupagem, também nesses momentos mais pautados pelo estilo (e por certa intenção) documental, carregam um potencial estético específico. Pensando na cena do julgamento, é possível delinear algumas questões relativas a decupagem importantes de se destacar: Kiarostami utiliza duas câmeras para filmar tal situação – durante o filme, ele mesmo explica aos personagens presentes o funcionamento de seu jogo de cena: uma das câmeras está voltada para Sabzian e outra transita entre os demais personagens, focando especialmente no juiz. Acredito que eu não poderia explicar melhor essa escolha do que o próprio Kiarostami (2004), então, trago aqui suas palavras:
“Naquela circunstância estavam em jogo dois graus de juízo diferentes: o juízo da lei e o juízo da arte. Se um juiz não tem, habitualmente, tempo suficiente para prestar atenção àquilo que um ser humano vive interiormente, a arte dispõe desse tempo. Tem mais paciência. É por isso que no decorrer do filme, há duas câmeras, uma para filmar o juiz, outra para Sabzian. Na realidade era um modo de afirmar que naquela sala existiam dois dispositivos: o dispositivo da Lei, que mostra o tribunal e descreve o processo em termos jurídicos; e o dispositivo da arte, que se aproxima do ser humano para colocá-lo em primeiro plano, para vê-lo em profundidade, compreender-lhe as motivações, adivinhar seu sofrimento. É função e responsabilidade da arte observar as coisas de perto, prestar atenção aos homens, e não os julgar com demasiada precipitação. Naquele caso, a ética determinava a estética: a lei olha em plano geral, enquanto a arte utiliza o primeiro plano. Eis porque intitulei o filme Close-up”.

Tem sido bastante comum encontrar, entre críticas dedicadas às mais diversas produções, a expressão: “Este filme é uma carta de amor ao cinema”. Particularmente, prefiro evitar o chavão, ou melhor, reservar sua utilização para tratar de Close-Up, pois esse filme é mesmo uma carta de amor ao cinema. Centrado no julgamento de Hossein Sabzian e na interseção entre a vida e a sétima arte, Close-Up se sustenta numa abordagem profundamente sensível da linguagem cinematográfica. Aqui, documentário e ficção se potencializam, operam em conjunto para estabelecer uma conexão mais profunda com os personagens e com suas histórias e sentimentos. Em meio a uma poderosa costura formal, cada movimento narrativo ou contemplativo, cada deslocamento ou posicionamento de câmera, implica escolhas estéticas (e até mesmo éticas) que circunscrevem e evidenciam uma das maiores potências do cinema: a capacidade de interpretar e reconfigurar a realidade sob um olhar humanista, entendendo a potencialidade do que se mostra e do que se esconde na engenharia audiovisual, especialmente quando procura-se representar um outro, quando se absorve mais que sua imagem, pelo toque de sua alteridade.
REFERÊNCIAS
BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2004.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
KIAROSTAMI, Abbas. “Duas ou Três Coisas que Sei de Mim”. In: KIAROSTAMI, Abbas; ISHAGHPOUR, Youssef. (orgs.). Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify, 2004. pp. 175-289.
KIAROSTAMI, Abbas. “Um Filme, Cem Sonhos”. In: Abbas Kiarostami: um filme, cem histórias. pp. 31-34. São Paulo: Catálogo CCBB SP, 2016.
PINTO, Ivonete. Close-up: a invenção do real em Abbas Kiarostami. 2007. 213p. Tese (Doutorado) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-05072009-203915/publico/4847284.pdf - Acesso em 29 de outubro de 2021.