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Não chore, Giulietta

  • 5 de jun. de 2024
  • 18 min de leitura

Por Juliana Gusman

 

Este texto foi escrito no contexto da Mostra Fellini, realizada no Cine Humberto Mauro, em Belo Horizonte. Esta é uma versão minimamente burilada do roteiro que serviu de base para a sessão comentada de Noites de Cabíria, realizada no dia 7 de junho de 2024. Tentei preservar ao máximo sua estrutura, com pequenas adaptações para anuviar as marcas da oralidade. Agradeço a Rodrigo Azevedo e Vitor Miranda pelo convite e a todas as pessoas que estiveram presentes na sessão, esgotada, e no debate, mostrando a força cultural, política e afetiva de uma sala de cinema pública.


Um beijo para Giulia Anna 


Durante a Mostra Fellini, que ocupará a mais instigante sala de cinema de Belo Horizonte durante o mês de junho de 2024, teremos, em diversas ocasiões, a oportunidade muito preciosa de discutir um dos grandes e inarredáveis diretores do século XX. Falaremos, exaustivamente, sobre Federico Fellini. E, justamente por isso, gostaria de apontar, na minha fala, para centralidade de uma outra figura absolutamente solar para que o cinema felliniano pudesse florescer. Esta é a única sessão comentada de um filme – Noites de Cabíria (1957) – que a tem como centro gravitacional, e por isso, dedico minha atenção e meu amor à minha quase xará, Giulia Anna Masina – Giulietta –, cuja morte completou, neste 2024, trinta anos.


Ela, que foi descrita por Charles Chaplin, em uma entrevista ao The New York Times, como a atriz que mais o comoveu, também foi alvo de censuras. Caetano Veloso, que dedicou uma bonita música às suas “pálpebras de neblina” e à sua “lágrima de negra tinta”, relatou, em um artigo para Folha de S. Paulo na ocasião de sua partida, que ouviu “de muitos amigos meus italianos inteligentes e informados palavras duras contra ela: ‘Giulietta Masina representa tudo que há de pior na Itália’; ‘O que atrapalha Fellini é o lado sentimental e carola, ou seja: Giulietta Masina’ etc. O próprio Glauber me disse em Londres em 1971, vindo de Roma, respondendo a minha pergunta sobre Fellini: ‘Ele continua lá, o problema é que ele não se separa daquela anã horrorosa’”.


Portanto, nada melhor, em uma conversa sobre um filme com mulheres putas, do que dessacralizar, pelo menos um pouco, nossos monstros sagrados. Rejeitando Glauber Rocha (com mais respeito do que, segundo Caetano Veloso, ela dedicou à Masina), honrarei, aqui, essa pequena gigante do cinema italiano. Com esse gesto, também rasuro, com modéstia, a longeva ideia de autoria cinematográfica, que surge com as reflexões críticas na Europa dos anos 1950 – portanto, no auge da ascensão de Fellini –, transformando certos diretores em monumentos, apagando a coletividade intrínseca a qualquer produção fílmica. O próprio Fellini rejeitava, pelo menos em partes, esse tipo de projeção. A Goffredo Fofi e Gianni Volpi, em A arte da visão (2012), disse que tinha medo de ser considerado um monumento. “Um monumento é pesado e imóvel. E tem pombos sobre a cabeça” (Fellini, 2012, p. 61).


Mas sem qualquer hesitação, Fellini reconhecia a importância de Giulietta, como demonstrou em depoimento a uma amiga jornalista, a estadunidense Charlotte Chandler – Charlottina! –, que o acompanhou, com papel e caneta, por mais uma década:


“É provável que o passado seja mais importante para pessoas que não tem filhos, pois elas sabem que, no futuro, não continuarão vivendo nos filhos e netos. É por isso, também, que nossos filmes são tão importantes para Giulietta e para mim. Talvez, através deles, ainda sejamos lembrados no futuro. Quando falo de nossos filmes, refiro-me não apenas aos filmes em que ela atuou. Ela esteve ao meu lado em todos os filmes, mesmo quando não ia ao set, mas ficava em casa. Ela cuidava de mim e se preocupava comigo. Eu telefonava com frequência para ela. Ela me preparava o jantar mesmo quando era muito tarde, e sempre foi minha principal assistente. Muitas vezes era a primeira a ver as coisas que eu escrevia, antes de qualquer pessoa” (Chandler, 1995, p. 265).      


 “Quando tenho que exprimir em palavras o papel que ela teve no nascimento de meus filmes, devo dizer algo que nunca disse para ela mesma. Ela não apenas me inspirou para La Strada e Le notti di Cabíria, mas também foi a fadinha boa em minha vida. Junto com ela, entrei em uma Terra Nova absoluta, terra que se tornou minha vida, terra que sem ela talvez eu não tivesse descoberto. Eu a conheci porque era dela o papel principal em minha peça radiofônica e ela assumiu o papel principal em minha vida” (Chandler, 1995, p. 50).       


A estrada da atriz-palhaça 


Giulietta Masina nasceu em 22 de fevereiro de 1921 em San Giorgio di Piano, no norte da Bologna. Era a mais velha de quatro irmãos, filha de um violinista e de uma professora de educação infantil. Seus pais a enviaram à Roma para morar com uma tia e completar seus estudos. Essa tia logo percebeu o interesse de Giulietta pelas artes, e a incentivou a investir na carreira de atriz. A então jovem frequentou a Universidade La Sapienza, uma das mais antigas do mundo, onde teve aulas de teatro entre 1941 e 1942. Em 1943, logrou o papel principal em uma peça radiofônica chamada Cico e Pallina, cujo roteiro era de um tal Federico. Por causa do programa, Giulietta conquistou uma notável popularidade e o seu marido de uma vida inteira. O show durou cinco anos e o casamento, cinquenta, até a morte de Fellini em 31 de outubro de 1993 – ele foi velado na sua fábrica de sonhos, os estúdios da Cinecittà.


A estreia de Giulietta no cinema foi em 1946, com Paisà, de Roberto Rosselini, do qual Fellini coassinou o roteiro. Mas seu primeiro grande papel foi como Marcella em Senza pietà (1948), dirigido por Alberto Lattuada, com quem Fellini também realizaria seu primeiro filme como diretor, Mulheres e Luzes, de 1950. Por Senza Pietà, Masina ganhou seu primeiro Nastro d’Argento, importante prêmio oferecido pelo Sindicato Nacional de Jornalistas de Cinema da Itália – feito que repetiria com sua Melina Amour de Mulheres e Luzes


Em 1952, interpretou Cabíria em uma única cena de Abismo de um sonho, o primeiro trabalho solo de Fellini na direção. Nela, a prostituta consola o inconsolável Ivan Cavalli (em uma atuação deliciosa de Leopoldo Trieste), abandonado pela recém-esposa que partiu em busca do astro de sua fotonovela preferida em plena lua-de-mel. Logo em seguida, Masina vive a doce Gelsomina, de La strada (1954), que é levada à força para uma vida itinerante ao lado do grosseiro Zampanò, personagem de Anthony Quinn. Este filme, que alçou Fellini a um reconhecimento mundial, lhe renderia o Leão de Ouro em Veneza e o seu primeiro Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O segundo viria com Noites de Cabíria (1957) – e o terceiro e quarto com Oito e Meio (1963) e Amarcord (1973). Por Noites de Cabíria, Masina seria laureada com o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes e com o seu terceiro Nastro d’Argento. 


Na filmografia de Fellini, Giulietta também apareceria em Il Bidone, de 1955, como Iris, a mulher de Picasso, um dos pilantras-trapaceiros que abusavam da fé alheia para enriquecer, interpretado por Richard Basehart, com quem a atriz já havia trabalho em La Strada. Após Noites de Cabíria, ela só retornaria ao set do marido em Julieta dos Espíritos, de 1965. A última parceria do casal – ao menos nesses termos – seria em Ginger e Fred, de 1986, no qual Masina contracena pela primeira e única vez com o alter ego cinematográfico do diretor, Marcello Mastroianni. Por Amelia Bonetti aka Ginger, Masina ganhou seu quarto Nastro d’Argento e um Globo de Ouro italiano. 


Fellini admitia que, possivelmente, não havia sido o melhor amigo ou marido para Giulietta. Contudo, ele não tinha dúvidas de que fora seu melhor diretor – não custa lembrar que Masina construiu uma carreira muito prolífica. E, dentre todas as personagens que criaram juntos, talvez Cabíria e Gelsomina sejam as mais transcendentais – o que não é, de forma alguma, um mero acaso. 


Da mesma mente e do mesmo útero nascem Cabíria e Gelsomina 


Ainda que Fellini tenha se inspirado na própria Giulietta para construir sua Gelsomina – influenciado por suas fotografias de infância e pela sua qualidade como atriz para expressar “o espanto, o sobressalto, as alegrias frenéticas e o entristecimento cômico de um clown” (Fellini, 2012, p. 91) – o primeiro produtor de La Strada, Luigi Rovere, insistiu, sem muita diplomacia, que Fellini considerasse outras atrizes. Mesmo Dino Di Laurentiis, que, junto com Carlo Ponti, terminaria por produzir o filme, tinha lá suas resistências em escalar a esposa de Fellini para o papel. 


Porém, segundo o próprio Fellini, a breve participação de Giulietta como Cabíria em Abismo de um sonho foi tão irresistível que não se pôde mais enxergar outra protagonista para La Strada. Cabíria abriu as portas para Gelsomina e, evidentemente, para si mesma. Talvez por isso Fellini as via como duas irmãs perdidas.  


Conforme o diretor, os alicerces das duas personagens eram idênticos: “Cabíria, assim como Gelsomina, é uma criatura que vive em um mundo demasiadamente duro e brutal para sua estrutura, é uma vítima da violência. Mas Gelsomina era um personagem mais alegórico e excepcional, em um filme que se ressentia, inteiramente, de uma estilização particular. Ao passo que Cabíria, mesmo sendo a exemplificação de um certo modo de sentir, é mais humana e mais reconhecível” (Fellini, 2012, p. 94). Para Fellini, Noites de Cabíria buscou, antes de tudo, evidenciar as fantasias de uma “perdedora nata” que, na lida com a realidade, entram desgraçadamente em conflito, provocando minimamente a nossa inquietude.  


Nesse sentido, entendo quando o diretor sugere que seu filme não é tanto sobre prostitutas, quanto sobre a subjetividade casmurra dos caminhantes solitários, que sempre lhe fascinaram. Em Noites de Cabíria, se ocupou de uma “excluída que conservou o seu orgulho” (1995, p. 122). Mas, ainda assim, não é fortuito que Cabíria seja uma prostituta. E defendo que, apesar de Noites de Cabíria acionar um certo regime discursivo dominante da prostituição, ele nos confronta e confia com uma puta (e mulher) incomum – para o repertório do cinema mundial, claro, e para Fellini, especialmente.  


A imagem-corpo da (não) mulher antifelliniana 


Talvez nenhuma mulher sintetize melhor o protótipo felliniano do que Anita Ekberg em La dolce vita (1960), para quem Fellini já disse: “você é a figura dos meus sonhos, que despertou para a vida” (Chandler, 1995, p. 129). Seios fartos, quadris largos e belezas estonteantes (dentro de um certo padrão estético, evidentemente) são predicados sintetizadores dessa bella donna, filmada sempre de forma a sobrelevar tais características. De fato, o diretor italiano assumia seu gosto por “dar papéis femininos para mulheres atraentes e sexies, pois estou convencido de que não apenas os homens, mas também as mulheres gostam de vê-las. E eu, claro” (Chandler, 1995, p. 144). 


As várias prostitutas que povoaram a sua filmografia – e foram muitas – também correspondem a esse imaginário: como as meretrizes em Satyricom (1969), Roma (1972) e Cidade das mulheres (1980) – ou, ainda, Suzy, a cortesã de Julieta dos Espíritos – que, numa escolha no mínimo ardilosa, é interpretada por Sandra Millo, que teve um caso de quase duas décadas com Fellini e encarna, neste filme, a feminilidade idealizada pela protagonista de Giulietta. Mas esta é uma questão para psicanalistas. 


O que quero argumentar é que, ainda que Masina tenha dado vida a uma (ou duas) das personagens mais memoráveis do universo felliniano, ela é, como mulher, radicalmente antifelliniana: não só a sua fisicalidade miúda contrasta com os padrões elaborados e cristalizados visualmente por esse universo, como suas personagens, principalmente Gelsomina e Cabíria, não são narrativamente desenvolvidas e filmadas como “mulheres”. Há uma outra relação de olhares em jogo quando Giulietta entra em cena. A sua qualidade clownesca (atributo, inclusive, celebrado e lembrado com mais frequência em performances masculinas, a exemplo do próprio Chaplin) faz com que ela supere um binarismo de gênero tão marcado na obra de Fellini. Para além das bambinas voluptuosas elevadas “à altura de deusas” (Chandler, 1995, p. 62) e dos ítalo-machos em crise permanente (o que é ótimo), Giulietta me parece um ser a parte. Se atrizes como Anita Ekberg, Sandra Millo ou Claudia Cardinale são as estrelas preferenciais das obras do diretor, roubo (com um pequeno gozo de ousadia) as palavras de Caetano, mais uma vez, para aventar que Giulietta é a voz da Lua, que canta, encanta e ilumina de uma maneira absolutamente singular suas terras oníricas.


Há uma anedota sobre um projeto nunca realizado que me faz firmar convicções de que o próprio Fellini percebia e tratava Masina de uma forma muito particular – não-binária, eu diria – como atriz. Um de seus sonhos não concretizados era filmar sua versão de Pinóquio: “Se tivesse feito esse filme, eu mesmo faria o papel de Gepetto. Eu só via um intérprete para Pinóquio: Giulietta” (1995. p. 248). Como o boneco, Masina sintetiza a imagem-corpo de uma criatura mágica – sem gênero, pós-gênero, pós-humana, queer –, cuja verdade ontológica reside em outras possibilidades de habitar o mundo do cinema. Antes de ser mulher, Giulietta era algo mais. E é por isso que a sua Cabíria é, a meu ver, excepcional. 


Noites de Cabíria, Lua de Masina 


Noites de Cabíria parte de uma relação longeva e afetiva de Fellini com os bordéis, que lhe proporcionaram momentos formadores durante a juventude. Para ele, que saboreava o cinema como “uma experiência erótica de cabo a rabo” (Chandler, 1995, p. 30), o sexo, junto com o circo e o espaguete, tornou-se uma fonte de inspiração de primeira importância. Depois de algumas pesquisas de campo e de firmar uma parceria com Pier Paolo Pasolini no roteiro, Fellini reconstitui um ambiente prostibular para elaborar a jornada de Cabíria, numa época em que suas produções, ainda que influenciadas pelo neorrealismo italiano, começavam a se distanciar de suas prerrogativas.


Desde La strada, Fellini começara a sofrer acusações de uma esquerda que se indignava com a virada supostamente individualista (uma visão da qual, diante de seus personagens fortemente alegóricos e da atenção do diretor aos detalhes do meio social no qual elas se inserem, podemos discordar) e catolicamente redentora de seus filmes – Fellini romperia mais definitivamente com o neorrealismo a partir de La dolce vita, que marcaria uma espécie transição, selando a mudança de perspectivas criativas com Oito e meio. Por essas idiossincrasias, Noites de Cabíria terminaria por compor, junto com La strada e Il bidone, aquilo que o historiador Peter Bondanella chamou de “trilogia da salvação” (Oliveira, 2008). 


Porém, Noites de Cabíria não foi bem acatado nem pela comunidade católica que até então via o cinema de Fellini com bons olhos. O filme foi pensado e produzido no cenário de uma inflamada discussão sobre a criminalização dos bordéis na Itália, o que se concretizou em 1958. Ainda que a prostituição jamais tenha sido considerada uma atividade ilegal no país, ela segue, ainda hoje, sem o suporte de qualquer tipo de regulamentação, o que contribui para a precarização das pessoas que exercem a atividade – numa situação semelhante, ainda que levemente mais agravada do que a do Brasil, onde o trabalho sexual é reconhecido pela Classificação Brasileira de Ocupações desde 2002. 


Além disso, o primeiro produtor do filme, Goffredo Lombrado, ficou horrorizado com a ideia de financiar uma história sobre uma prostituta, com a qual o público, a seu ver, seria incapaz de simpatizar. E não foi o único. Somente quando Dino de Laurentiis ofereceu um contrato para cinco projetos de Fellini foi possível iniciar as filmagens de Noites de Cabíria. 


Obviamente, esta obra dialoga, em alguma medida, com um regime discursivo da prostituição sedimentado não apenas no cinema, mas em outras formas de produção e expressão cultural. Mas antes de descrever esse regime, gostaria, como sempre faço, de firmar uma posição política. Falo de um lugar de alguém que pesquisa imagens da prostituição no cinema e de alguém que encara a prostituição como trabalho. Um trabalho que explora mulheres – cisgêneras, transgêneras – e outros sujeitos que o exercem, sim, mas, como diz Ramayana Lira (2017), ninguém, no capitalismo, é dono do corpo em serviço. Alcançamos diferentes graus de prestígio e reconhecimento material e simbólico, mas, no fundo, não é só a puta “que se vende”. O problema é que as trabalhadoras sexuais, ainda que exerçam remuneradamente uma atividade que muitas mulheres fazem de graça – o trabalho de reprodução social da vida, e o prazer sexual é um pilar dessa reprodução –, elas são estigmatizadas e precarizadas para que se mantenham lubrificadas as engrenagens sistema econômico político que nos massacra a todas; inclusive as engrenagens que mantêm muitas de nós trabalhando (sexualmente) sem esperar nada em troca. Nenhuma sexualidade é livre no mundo em que vivemos. 


As práticas culturais foram fundamentais para transformar a prostituta, ao longo do tempo, no polo negativo de uma das dualidades que produzem a mulheridade estimada – que também deve ser branca, cisheteronormativa, jovem etc. Ela é a contraparte obscena e abjeta da mãe/esposa sacrificial que, nas palavras de Barbara Creed (2007), deve ser eliminada da cena pública por assombrar posições (de gênero e sexualidade) socialmente instituídas, mas cuja existência é essencial para a cristalização de falsas normalidades. Quero dizer que a puta e o Outro da mulher ideal, e um Outro do qual essa mulher ideal depende para existir. Ela institui as fronteiras que não devemos cruzar. 


O cinema acolhe, com mais ou menos atritos, essas heranças estigmatizantes. De acordo com Russel Campbell (2006), o cinema narrativo desenvolveria os arquétipos da puta em dois grandes arcos comuns. De um lado, há a sofredora incapacitada para lidar com seus infortúnios e que, exatamente por esse motivo, se torna merecedora de nossa compaixão – ou de um possível resgate. De outro, quando demonstra algum tipo de altivez, a prostituta se converte em alvo de censuras. Geralmente, castigos disciplinares são aplicados por algozes como cafetões ou serial killers, “substitutos masculinos repreensíveis”, que preservam o protagonista masculino que a audiência é convidada a glorificar. De qualquer modo, a prostituta é multiplamente contida no seu inevitável e quase involuntário ímpeto de perturbar os bons costumes – em outras palavras, ou ela é enquadrada como uma vítima, incapaz de provocar mudanças (em si mesma e no mundo que a cerca) ou é morta por não acatar passividades. 


Diferentes estereótipos da puta seriam alocados nesses arcos narrativos, entre eles, o da “prostituta mártir”, edificada em produções fílmicas dos anos 1910 e 1920 a partir dos ecos da Madalena Arrependida da tradição cristã, um ícone da modernidade amplamente representado pela pintura dos séculos XV e XVI, sendo retomado, posteriormente, pela literatura oitocentista. À primeira vista, apesar de seu caráter episódico, poderíamos enquadrar Noites de Cabíria nessas tradições narrativas. Mas há brechas para contraleituras (feministas), e são elas que eu gostaria de, brevemente, alargar e expandir em três atos.  


I. Narrar

Na verdade, não é fundamental, à narrativa de Fellini, que Cabíria seja uma prostituta: em outras palavras, não é necessariamente a prostituição que sela o seu destino desafortunado. Ainda que verbalize querer mudar de vida, não podemos aferir que é da prostituição que ela ambiciona, visceralmente, se livrar: antes disso, Cabíria parece querer superar uma solidão própria às mulheres de sua classe, independente de suas ocupações laborais – e talvez por isso Fellini tenha afirmado que este não é um filme sobre prostitutas. Em nenhum momento, questiona-se, moralmente, a entrada e permanência de Cabíria no ofício. 


Mas ainda que Cabíria pudesse ser qualquer outra coisa que não uma prostituta, prostituta ela é e, por isso, o fato da personagem almejar o amor romântico – o contraponto do amor venal da prostituição – e se situar em uma realidade material que a priva de concretizar sonhos – uma impossibilidade, nos diz a história do cinema, para as putas, que devem permanecer ocupando os territórios inabitáveis da abjeção – pode reforçar um regime discursivo vitimizador. As atividades prostitutivas são estigmatizadas para se legitimar tudo aquilo a que Cabíria aspira – desejos-motores do fluxo do filme.  


Mas, em Fellini, nada é tão simples. Se a foto de Giorgio, o falso namorado que empurra Cabíria no rio Tibre no início da obra para lhe roubar a bolsa, é colocada em uma espécie de altar, já sinalizando a relação estreita entre o ideal do casamento e a mentalidade e a fé cristãs – às quais Cabíria inclusive recorre continuamente para conquistar suas pretensões amorosas –, essas instituições umbilicalmente vinculadas – casamento, família e a Igreja – são elaboradas, narrativamente, como, no mínimo, cínicas e traiçoeiras.

Na obra, o amor romântico é uma fraude e o milagre suplicado por Cabíria apenas a devolve na situação de desamparo na qual a conhecemos. A salvação está, em última instância, em si mesma, ainda que não saibamos como ela conseguirá se salvar – e, aqui, ela se aproxima mais da resiliente Julieta, de Julieta dos Espíritos, do que de Gelsomina, entregue à própria sorte – ou ao próprio azar. Ou seja, na dicotomia entre o profano e o sagrado, tão verticalmente presente no filme, Cabíria encontra amparo, ao final, entre os seus, os desvalidos dançantes, mambembes à margem – os profanos: encontra amparo no embalo de uma serenata circense, em uma estrada que a leva adiante, ainda que ela ainda não saiba para onde deve ir. Em seu ato final, ao mirar diretamente a câmera, Cabíria também não deixa de encontrar amparo em nós. 


II. Dançar 

Para além de uma estrutura narrativa dúbia, há, ainda, o corpo inequivocamente expressivo de Giulietta, essa mulher antifelliniana, essa figura felliniana ao extremo. A começar pelo figurino – escolhido conjuntamente por Fellini e Masina –, que pouco remete à sensualidade rendada das putas comuns. Com suas roupas listradas, Cabíria se parece mais com a palhaça Gelsomina do que com qualquer outra meretriz exuberante da filmografia de Fellini. As referências ao Carlitos de Chaplin também começam aí, com a caracterização da personagem, que carrega um guarda-chuva para todos os lados – desde Abismo de um sonho, cabe pontuar. O par de sobrancelhas oblíquas conferem a ela, como nota o crítico Roger Ebert, um ar de desenho animado – seu semblante será suavizado (e humanizado) apenas na cena final. 


Não obstante, há, na performance de Giulietta, um exagero, muito preciso, que assinala sua (politicamente interessante) inadequação – e, sobretudo, a sua (ainda mais instigante) indiferença à inadequação. Cabíria é uma puta afrontosa, que não se curva facilmente ao mundo que a rejeita. Sem constrangimentos, explode em justas revoltas. Vai do tapa ao mambo com vivacidade e ligeireza, transbordando uma energia incendiária aparentemente incompatível com seu porte miúdo. 


Esse excesso teatral, reforçado pela técnica de dublagem utilizada em todos os filmes de Fellini, ainda pode nos fazer lembrar, talvez, de que a prostituição é, antes de tudo, uma encenação da hiperfeminidade normativa. Cabíria também é atriz. Mas, paradoxalmente, há algo de muito real e genuíno na sua personalidade hiperbólica – e esse paradoxo, que não nos permite distinguir perfeitamente as várias camadas de atuação em jogo, é mérito da artista rara e inteligente que é Giulietta Masina.  


III. Olhar 

Mas, como já sugeri anteriormente – e, aqui, chego no meu terceiro ponto –, há um modo muito específico de filmar esse corpo ambíguo, o que é um mérito de Fellini. 


Fazem parte da iconografia da prostituição as pernas, os saltos e a fragmentação geral dos corpos femininos em tela – um quadro que o diretor chega a reproduzir para nos introduzir à zona. Em Noites de Cabíria, a primeira visão próxima que temos de Giulietta é, de fato, de suas pernas. Porém, Cabíria está de cabeça para baixo, sendo sacudida por dois homens que tentam lhe ajudar a recobrar a consciência depois do afogamento que quase lhe tirou a vida. Não deixa de ser uma inversão de perspectivas. Só então, a câmera se volta para seu rosto, ainda inconsciente, vulnerável – e, temos que reconhecer que, apesar da situação lhe infligir uma aparente imobilidade, Cabíria, uma vez desperta, recusa de pronto a vitimização e a ajuda de seus salvadores. Ela já nos dá pistas de que não precisa de heróis.  


No restante do filme, Fellini prioriza a profunda dramaticidade do corpo e do rosto de Giulietta – o uso do primeiro plano na cena derradeira me arrepia de um jeito muito parecido como faz o modo de Carl T. Dreyer filmar Renné Falconetti, em seu muito diferente A Paixão de Joana D’Arc (1928). Mas há algo que aproxima essas parcerias enfeitiçadas, esses encontros especiais entre duas grandes atrizes e diretores que sabiam ler os seus olhos. Fellini jamais estilhaça Cabíria a partir de uma mirada masculina objetificadora. Diante de nós, ela segue inteira. 


Gosto particularmente de uma cena de Noites de Cabíria, que, para mim, sintetiza a diferença de tratamento iconográfico dado à Giulietta. Na Via Veneto, duas mulheres, bastante fellinianas, estão de costas para a câmera e próximas a ela, de forma que enxerguemos, somente, suas grandes nádegas. Entre elas, há uma ainda mais pequeníssima Cabíria, de frente. Elas andam uma em direção às outras. À medida que as mulheres fellinianas, possíveis garotas de programa de luxo, vão perdendo tamanho (porque se distanciam da câmera), Cabíria vai crescendo na imagem; ao passar por elas, a essa puta combativa, engrandecida, as desafia, encarando-as nos olhos. Giulietta/Cabíria não se curva às convenções. Fellini também ama e sublima a sua impertinência – em todos os sentidos possíveis. 


Também acho interessante que, em uma única cena que alude a um enquadramento voyeurista – muito empregado pelo cinema para retratar as prostitutas – é Cabíria quem é dona do olhar: observa, do buraco de uma fechadura, quando está presa no banheiro do ator Alberto Lazzari, a mais pura encenação da masculinidade hegemônica.


Mas há uma outra cena que me comove, incomparavelmente, por suas escolhas formais. Cabíria é o nome de guerra de Maria Cicarelli, que o revela em apenas duas ocasiões: uma, por escolha, na sequência (suprimida nas versões originais do filme) em que um bom samaritano distribui comida a sujeitos empobrecidos (e que talvez nos apresente a um vislumbre do possível destino de Cabíria); e outra – a cena a que me refiro –, por uma manipulação cruel, quando a prostituta é hipnotizada por um mágico (com sugestivos chifres de demônio) durante um espetáculo de variedades para divertimento do público.


Mas não é do ponto de vista dos beberrões que Fellini a filma. Numa das tomadas mais bonitas (pelo menos para mim) da história do cinema, calma, iluminada por um único feixe de luz e embalada por poucas notas do piano de Nino Rota, entramos, junto com Cabíria, nesse transe poético. Estamos com ela em vida e sonho. E não há nada de insignificante na mágica empática, conjurada por Fellini e Giulietta, que nos transubstancia, espectadoras e espectadores, neste momento de suspensão corporal, em uma puta como Cabíria. 

 

Por isso, gosto de pensar que, na cena da procissão, quando o mar de personagens devotas gritam, em adoração à Madonna, “Viva, Maria!”, o próprio filme esteja nos dizendo, nas suas entrelinhas, “Viva, Cabíria!”. 


Assim, finalizo a minha fala com um trecho de um artigo de Roger Ebert, que suponho alinhavar alguns dos nós que tentei desatar hoje, nesta Noite de Cinema. Ele escreve: “De todos os personagens, Fellini disse uma vez que Cabíria é a única com a qual ele ainda se preocupa. Em 1993, quando Fellini recebeu o Oscar honorário pela sua carreira, ele olhou, do palco, para Masina, sentada nas primeiras fileiras, e pede que ela não chore. A câmera corta para o seu rosto, mostrando-a sorrindo bravamente entre as lágrimas: e lá estava Cabíria.


Viva, Giulietta.


 

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Russel. Marked Women: prostitutes and prostitution in the cinema. Madison: University of Wisconsin Press, 2006.

CHANDLER, Charlotte. Eu, Fellini. Rio de Janeiro: Editora Record, 1995.

CREED, Barbara. The monstruous feminine: film, feminism, psychoanalysis. Nova York: Routledge, 2007.

EBERT, Roger. Nights of Cabiria. Roger Ebert, 16 ago. 1998. Disponível em: < https://www.rogerebert.com/reviews/great-movie-nights-of-cabiria-1957>.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

FELLINI, Federico. A arte da visão: conversa com Goffredo Fofi e Gianni Volpi. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

GUILYARD, Jeannine. The Sweetness and Genius of Giulietta Masina. Fra Noi Magazine, 12 jun. 2020. Disponível em: < https://italiancinemaarttoday.blogspot.com/2020/06/fellini100-sweetness-and-genius-of.html>.

LIRA, Ramayana. Dicionário crítico: puta. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2017.

OLIVEIRA, Roberto Acioli. Fellini e a Trilogia da Salvação. Cinema Italiano, 20 abr. 2008. Disponível em: < https://cinemaitalianorao.blogspot.com/2008/04/fellini-e-trilogia-da-salvao.html#:~:text=Na%20seq%C3%BC%C3%AAncia%20da%20Trilogia%20do,da%20recorr%C3%AAncia%20de%20elementos%20estruturais.>.

VELOSO, Caetano. Giulietta Masina, a voz da lua. Folha de S. Paulo, 3 abr. 1994. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/03/mais!/5.html>.

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