por Luiz Coutinho
1. Quando comecei a planejar este texto, tinha em vista o objetivo de apresentar o cinema de Samuel Fuller e seu filme Paixões que alucinam. Depois, intuí que meu trajeto deveria ser outro: sendo este um filme exibido no contexto de uma mostra sobre Jean-Luc Godard, talvez mais importante fosse deslindar algo da relação que o cineasta francês estabeleceu historicamente com Fuller. Essa relação, entretanto, poderia se desdobrar em um longo texto sobre as correspondências, os ecos, as influências, os fantasmas de um diretor sobre o outro, em tarefa que se mostraria tão complexa quanto a minha primeira ideia. Em um último momento antes da escrita, compreendi que o filme em questão me permitia uma liberdade de redação da qual não suspeitava. Pois este filme, em que a loucura do protagonista invade insidiosamente a forma fílmica, desregulando e desequilibrando as regras e o equilíbrio clássicos, me pareceu um belo ponto de partida para um texto que, reverberando-o, fosse ele também acometido pela doença da elipse, dos solavancos e dos saltos ilógicos. Um texto em notas, portanto, que funcionam como portas que se abrem neste corredor que é Paixões que alucinam.
2. Ao escrever sobre Um filme para Nick (1980), o filme de Wim Wenders sobre Nicholas Ray, Serge Daney afirma se tratar menos de um filme sobre a filiação do que a filiação tornada filme. O crítico relembra as aparições de certos cineastas hollywoodianos em obras do cinema moderno (Ray em Wenders, Welles em Chabrol, Lang em Godard) para questionar sobre a relação entre essas aparições e o término de uma certa ideia de cinema que os cineastas europeus vieram a enlutar. Com a crise dos estúdios de Hollywood, projetos desses cineastas tornavam-se raros: Minnelli, Tourneur, Kazan, Wilder, Preminger, entre outros, foram relegados à margem da produção. A conclusão de Daney é que “os jovens cineastas europeus exorcizaram então o medo que tinham de não filmar para sempre, permitindo aos seus antecessores uma espécie de sobrevida fílmica”. Entre os diretores afetados pela crise estava Samuel Fuller, que seria ator de outro filme de Wenders, O Estado das Coisas (1982). Anos antes, entretanto, seu corpo já se fizera presente em outro filme moderno. Interpretando a si mesmo em O Demônio das Onze Horas (1965), de Jean-Luc Godard, Fuller é interpelado pela personagem de Jean-Paul Belmondo durante uma festa. Este lhe pergunta o que é, afinal, o cinema. O cineasta responde: “O filme é um campo de batalha: amor, ódio, ação, violência, morte... Em uma palavra – emoção!”.
3. Samuel Fuller, nascido em 1912, foi copyboy, jornalista, roteirista, escritor de literatura policial, cineasta, ator e soldado em uma Divisão de Infantaria durante a Segunda Guerra Mundial. Seu primeiro filme como diretor, chamado Matei Jesse James, data de 1949. Figura ambivalente, incontornável e indefinível, foi um defensor da democracia jeffersoniana, um opositor ao macartismo (a caça às bruxas que, promovida pelo Senador McCarthy em Hollywood, perseguiu artistas de esquerda) e um inconformista ao mesmo tempo antifascista e anticomunista. Esta disposição moral lhe rendeu críticas tanto pela esquerda quanto pela direita, as quais demoraram a reconhecer em Fuller algo além de um mero artesão responsável por filmes industriais medíocres.
4. Paixões que alucinam narra a história de Johnny Barrett (Peter Breck), um jornalista do Daily Globe que se infiltra em um hospital psiquiátrico para desvendar o assassinato cometido contra um dos pacientes. O primeiro roteiro do filme, escrito ainda nos anos 1940, chamava-se Straitjacket (camisa de força, em tradução literal). O projeto deveria ser dirigido por Fritz Lang, cujas discordâncias quanto ao gênero do protagonista (Lang queria uma mulher, Fuller preferiu um homem) o afastaram da realização. Só anos mais tarde, já na década de 1960, é que o filme foi feito pelas mãos do próprio Fuller. Nas palavras do cineasta, a primeira versão do roteiro dava menos importância à investigação de Johnny e focalizava, pelo contrário, no cotidiano do hospital psiquiátrico e nos maus tratos a que eram submetidos os pacientes. É possível que, nesse primeiro rascunho da história, o filme estivesse mais alinhado a uma de suas inspirações, o livro “Dez dias em um hospício”, publicado pela jornalista Nellie Bly em 1887. Bly, na ocasião, fingiu ser doente mental para ser internada em um hospital psiquiátrico feminino na Ilha de Blackwell, em Nova Iorque. Quando dentro do manicômio, deparou-se com inúmeras situações de abuso e violência que passavam pela privação de comida e de roupas, pela falta de higiene, pela tortura física e psicológica, entre outras. Fuller, que em seus tempos de jornalista teve conhecimento da situação vivida pelas vítimas dos hospitais psiquiátricos, indicava já na primeira página do roteiro uma cena em que os pacientes se banhavam nas próprias fezes.
5. O cinema é um campo de batalha, e assim também é a cinefilia. Diante dos ataques sofridos pelos filmes de Fuller na França dos anos 1950, uma geração de críticos levantou a bandeira fulleriana. Se na sociedade francesa da época reinava, sobretudo, um intelectualismo à esquerda, o mesmo se estendia à crítica de cinema. Nessa frente, figuras como Georges Sadoul (um importante historiador de cinema alinhado ao stalinismo) e André Bazin (figura
incontornável da crítica francesa) tomaram a dianteira da guerra contra Fuller. Para estes e outros, Fuller era desprezível, vulgar, cínico, um papagaio imperialista que repetia os mantras do anticomunismo. Não é acidental que Anjo do Mal (1953) só tenha chegado às telas francesas na década seguinte, assim como não é fortuito que o filme tenha sido lançado em duas versões: uma original, para ser exibida nas salas especializadas, e outra alterada, dublada, para os cinemas populares. Na dublagem, a trama envolvendo um microfilme comunista se torna uma história de tráfico de drogas, onde a menção às palavras “comunista” e “comunismo” é substituída por “droga” e “traficantes”. Durante os anos 1950, jovens críticos como François Truffaut, Jean Domarchi, Luc Moullet e – claro – Jean-Luc Godard saem em defesa do cinema de Fuller, nesta que Antoine de Baecque chamou de “crise fulleriana da cinefilia francesa”.
6. Autores como Jacques Lourcelles e Jean Narboni estão de acordo que o principal tema fulleriano é a confusão de identidades. Em Paixões que alucinam, Johnny se passa por doente mental para desmascarar o assassino do hospital psiquiátrico e, com isso, ganhar um prêmio Pulitzer. Sua trajetória dramática, entretanto, mostra que os limites entre a razão e a loucura começam a esburacar conforme o protagonista leva a cabo sua investigação no interior do manicômio. Mais do que uma insanidade induzida por fatores externos (os maus tratos, por exemplo, que no filme se tornam secundários), o salto de Johnny em direção à loucura parece consequência de sua própria ambição: interpretando um doente mental, ele trava uma batalha (sempre uma batalha, em Fuller) com o próprio cérebro, que subitamente guarda duas personalidades em um único corpo. Na medida em que a personagem vacila em direção à loucura, o próprio filme é afetado, tornando-se cada vez menos linear e cada vez mais sobressaltado, instável, lacunar, etc. Sabe-se que, no estilo barroco de Fuller, planos-sequências convivem com montagens rápidas, momentos ruidosos são justapostos a silêncios perturbadores, externas arejadas são violentamente substituídas por internas claustrofóbicas, planos gerais saltam vertiginosamente para close-ups, ações deflagradoras são instauradas após longos períodos de espera, etc. Aqui, essas operações parecem perfeitamente adequadas ao material dramático: é na mudança súbita de escalas ou na transição alucinante de um registro realista para o expressionismo, por exemplo, que o filme reverbera as passagens da personagem da sanidade à loucura (e vice-versa).
7. Em sua trajetória, Johnny cruza com três personagens especialmente importantes: Stuart, soldado que imagina fazer parte do exército confederado da Guerra de Secessão; Trent,
estudante negro que acredita ser membro da KKK; e Boden, físico renomado que regrediu à personalidade de uma criança de seis anos. Se o corredor do hospital psiquiátrico pode ser lido como um espelho da sociedade estadunidense, é porque ali habitam os fantasmas da guerra (Stuart), do racismo (Trent) e do terror nuclear (Boden). Em seu texto sobre o filme, João Bénard da Costa constata que há ainda um quarto fantasma nesse universo metonímico – aquele do casamento. Quando internado, Johnny é acometido pelas visões febris de sua esposa, que trabalha como stripper, cantando em suas roupas de trabalho. É como se o filme nos dissesse que uma das razões para a loucura do protagonista fosse sua possessividade monogâmica e seus ciúmes obsessivos, sustentáculos da instituição do casamento. Junto, portanto, ao patriotismo, ao terrorismo atômico e ao racismo, encontramos, em Paixões que alucinam, o tema da sexualidade (não é o caso de nos lembrarmos que uma das cenas mais impactantes do filme envolve ninfomaníacas?).
8. Na edição 76 da revista Cahiers du Cinéma (novembro de 1957), Godard escreve sobre o faroeste Dragões da violência. Tático, estratégico, o jovem crítico de cinema compara o filme de Fuller aos cinemas de Abel Gance, Stroheim e Murnau – cineastas amplamente mais consolidados na França. François Truffaut, no ano anterior, já havia elogiado a secura, a brutalidade, a invenção e a eficácia da mise en scène fulleriana em seu texto sobre Casa de bambu. Fuller se torna uma espécie de estandarte da “política dos autores” defendida pelos jovens críticos franceses cujas atividades se concentraram, sobretudo, nos Cahiers du Cinéma. Polêmicos, provocadores, “neoformalistas” (nas palavras de André Bazin), esses jovens críticos fizeram da mise en scène – equivalente da organização formal de um filme – o epicentro do pensamento sobre cinema. Para eles, a moral de uma obra não reside em seu tema ou em seu discurso ideológico, mas na forma: “a moral é uma questão de travellings”, dirá Luc Moullet em seu texto fundamental sobre o cinema de Fuller (ambos tornariam-se amigos). Embora tenham sido designados como “hitchcock-hawksianos”, em função da defesa desempenhada pelos cinemas de Hitchcock e de Hawks, poderíamos adornar esses jovens críticos com o complemento “fullerianos”, pois o diretor de Renegando meu sangue ocupa lugar privilegiado nesse panteão autorista. Elogiado por sua ambiguidade, seu barroquismo, seu lirismo e seu tratamento da violência, Fuller passa a figurar entre os grandes de sua arte, ao lado de cineastas igualmente emergentes como Nicholas Ray, Robert Aldrich ou Richard Fleischer.
9. Quando dava aulas de cinema na Universidade de Nova Iorque, Martin Scorsese sempre privilegiava os filmes de Fuller. Para ele, o gênio do diretor de Tormenta sob os mares está na sua maneira de filmar a violência, que nos filmes toma a forma de uma intensidade emocional prestes a explodir, como se no limite da compressão. Essa passagem da intenção ao ato, do mental ao físico, da impregnação à explosão configura, para Jean Narboni, o motivo fundamental do cinema de Fuller. Esse instante de passagem, para o autor, é mais importante do que suas consequências, pois o que interessa ao cineasta é esse momento deflagrador em que uma linha é ultrapassada e, com isso, uma conversão se opera no corpo do ator. Paixões que alucinam leva essa lógica a uma dimensão paroxística: trata-se mesmo de um filme sobre essa passagem da “vegetação” à “explosão”, da “impregnação misteriosa” às “detonações imprevisíveis” (tomo as palavras entre aspas de Deleuze, outro admirador da obra de Fuller). O corredor do hospital psiquiátrico é esse campo onde os corpos armazenam uma energia cuja descarga só pode ser realizada pela detonação brutal de uma violência ou de uma loucura reprimidas.
10. Godard foi um dos carros-chefe da “política dos autores”. Em 1952, seu texto sobre Pacto sinistro, de Hitchcock, marca uma etapa importante daquilo que viria a tomar forma como uma reflexão neoformalista na crítica de cinema francesa. Aderindo à tendência “hitchcock-hawksiana-fulleriana” da qual seria um dos fundadores – tendência que sobrepôs a forma ao tema, a mise en scène ao roteiro, os filmes hollywoodianos às produções soviéticas e francesas –, o crítico e cineasta chegou a inverter o aforismo de Luc Moullet. “O travelling é uma questão moral”, é o que ele afirma em uma mesa-redonda sobre Hiroshima meu amor. Se Fuller é um de seus cineastas de cabeceira, podemos supor (já que rareiam os textos do autor sobre o cineasta) que a razão se deve, em parte, ao gosto pelos filmes menores, de baixo orçamento, com ritmos fulminantes e filmagens rápidas (lembremos da cartela presente no desfecho de Carmen de Godard: “em memória dos filmes pequenos”). Em Acossado, o plano subjetivo em que Belmondo observa Jean Seberg pelo jornal enrolado é diretamente transportado de Dragões da violência, em que o canhão do fuzil é aquilo que desenha o círculo no interior da imagem. Há quem suponha, como Jean Narboni, que a corrida final do filme de Godard também seja diretamente influenciada pelo desfecho de A lei dos marginais. Made in U.S.A, por sua vez, é dedicado a Samuel Fuller. Ora, se Godard e Belmondo lhe perguntam o que é o cinema em O Demônio das Onze Horas, é porque Fuller representa, mais do que uma simples influência, uma ideia de cinema.
Nota adicional sobre Paixões que alucinam: desconheço, na história do cinema, melhor filme sobre o “method acting”. “O método” era o nome dado à abordagem de atuação ensinada no Actor’s Studio em Nova Iorque a partir dos anos 1940. Inspirado nas ideias de Stanislavsky, ele propunha a identificação temporária entre o ator e seu personagem – como se o primeiro construísse o segundo “de dentro”. Não faltam exemplos de atores e atrizes da história do cinema que trabalharam de acordo com o “method acting”, incluindo aqueles e aquelas que conduziram o experimento a um ponto extremo em que o intérprete se confunde totalmente com sua criação (Daniel Day-Lewis, Heath Ledger, Robert De Niro, Christian Bale, Marlon Brando, etc). Paixões que alucinam é um grande filme sobre “o método”: Johnny não seria um ator que, à guisa de conquistar um prêmio (Pulitzer-Oscar), tenta viver temporariamente como um doente mental? Quando a personagem é entrevistada pelos médicos, que devem determinar se se trata de um louco ou não, Johnny começa a se lembrar dos ensaios e do roteiro que aprendeu a decorar. Ele chega a prever as palavras que sairão das bocas dos médicos, como se interagisse mentalmente com um parceiro de cena. Infiltrar-se no hospital psiquiátrico, nesse caso, é a forma encontrada pelo protagonista para construir seu personagem: desde o início um universo de cinema (um corredor construído em estúdio, um fundo em falsa perspectiva), o hospital é filmado em preto e branco e estilizado pela iluminação. Na cena em que Pagliacci (Larry Tucker) canta O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, o que está em jogo não seria justamente a indecidibilidade entre o ator e o personagem, a ópera e a loucura, o simulacro e a realidade? E o resultado do “método”, quando levado às últimas consequências, não seria a passagem irreversível de uma identidade à outra, simbolizada aqui nos instantes em que Johnny, sintomaticamente, perde a capacidade de falar? Em dado momento do filme, quem se manifesta não é mais o ator Johnny, mas o personagem que ele criou pelo “método”. É por isso que ele olha para o retrato desenhado por Boden, no final, e não se reconhece no desenho. “Mesmo que eu não resolva o caso, a experiência pode virar uma peça, um livro ou até mesmo um filme!”, é o que diz Johnny no início de Paixões que alucinam. E um filme, de fato, a experiência virou.
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