por Alexandre Pimenta
Pretendo aqui listar ideias e conceitos para pensarmos em caminhos e estabelecermos uma real prática de conservação de nossa memória audiovisual. Como diz Henry Langlois: Longe de ser um cemitério ou uma galeria, uma cinemateca é um organismo de combate”.
A ideia de preservar filmes é tão antiga quanto o cinema. Desde as primeiras projeções de Lumiere encontramos na imprensa notas e matérias exaltando o potencial do registro histórico do filme. Porém, foi longo o caminho para que as primeiras tentativas para a formação de coleções de filmes chegassem ao que chamamos hoje de cinemateca.
– Por ‘Preservação Audiovisual’ se entende o conjunto de procedimentos, princípio, técnicas e práticas necessários para a manutenção da integridade do documento audiovisual e garantia permanente da possibilidade de sua experiência intelectual, segundo o Plano Nacional de Preservação Audiovisual (PNPA).
Se o interesse sociológico pelo filme se manifestou desde as primeiras projeções, ele foi limitado, ao que interessava preservar. Eram valorizadas como dignas de conservação as vistas de grandes cidades, visitas de chefes de estado, casamentos, festejos, cerimônias religiosas, manobras militares, etc. Sobretudo a produção ficcional foi deixada à própria sorte. Algo que pode ser traduzido como uma condenação ao seu desaparecimento, já que o suporte de nitrato de celulose, usado nos filmes até os anos 50, é instável, decompõe-se com relativa facilidade, além de ser auto inflamável.
Na década de 30, houve um salto no desenvolvimento histórico do conceito de cinemateca proposto pela jornalista francesa Luciene Escoube. Trata-se de uma definição enxuta do conceito de cinemateca moderna. Fundamentalmente, envolve a criação de um grupo de pesquisa que se propunha a prospectar filmes quaisquer que sejam suas proveniências, suas tendências e suas épocas, o armazenamento desse material original e a feitura de cópias deles, a criação de arquivos de não filmes (biblioteca, acervo fotográfico, cartazes, etc.) e uma sala de repertório para o arquivo. Finalmente era preciso trabalhar para facilitar o acesso a todo o material do arquivo a especialistas, técnicos e pesquisadores. É interessante notar que a definição concisa de Escoube, embora deixe visíveis os intuitos democráticos inerentes ao conceito, não trata da parte pedagógica da difusão, de como e para quem seria feita a difusão.”[1]
1- Como estão conservados os materiais fílmicos?
Ainda falta uma pesquisa oficial sobre esses destinos . São poucos acervos cinematográficos que podem ser encontrados no Museu da Imagem e do Som – MIS BH (outrora conhecido por Centro de Referência Audiovisual – CRAV), na Universidade Federal de Minas Gerais, especialmente no Departamento de Belas Artes, no Arquivo Público Mineiro, na Rede Minas e em acervos pessoais. Também o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, MAM, acolhe a produção de diversos diretores mineiros. No restante do estado temos acervo significativo do Humberto Mauro, depositado no CTAV – Centro Técnico Audiovisual - no Rio de Janeiro. Na Cinemateca Brasileira encontram-se originais dos pioneiros como Igino Bonfioli. Alguns filmes mais recentes têm sido depositados no APM, uma pequena lista de filmes, como, por exemplo, os realizados pelo programa Filme em Minas. Há ainda os acervos de festivais, mas não conhecemos nada sistematizado de catalogação. Hoje alguns cineastas e produtoras se preocupam em preservar seus filmes. Existem coleções particulares em precário estado de conservação. O acervo da Rede Minas tem recebido mais atenção nos últimos anos. Rádio pouco se preserva. Sem mencionar os acervos contemporâneos ou produção contemporâneas, digitais, a facilidade de acesso tem aumentado muito a produção de material audiovisual. Outro exemplo que merece grande atenção é o da produtora Minas Filmes, referência para o audiovisual em Minas Gerais e no Brasil. Criada em 1949, por José de Araújo Cotta, sua produção, capturada em 16 e 35 mm, registra eventos políticos, culturais e institucionais do Estado. São mais de três mil rolos de películas em latas que precisam de verificação urgente do estado de conservação e de referências mais precisas sobre os filmes. Em 2022 completam 31 anos que o acervo está fechado, à espera de investidores sensíveis à arte e à memória fílmica no Brasil.
2- O que há de tecnologia disponível para a conservação e restauro dos filmes?
São conceitos e técnicas diferentes. A restauração pode ser desdobrada em diversas etapas, desde uma simples cópia até a recuperação de todos os fotogramas e retorno ao suporte original. Em Belo Horizonte não existem equipamentos disponíveis de restauro, formatados para tal. Esse serviço requer um investimento alto na aquisição de aparelhagem.
Para preservação fílmica o local mais adequado, aparelhado, é o MIS-BH com câmaras climatizadas, mesas de revisão, mesas de montagem – moviola. Hoje o Arquivo Público Mineiro armazena corretamente seu acervo, mas não tem projeto estruturado de preservação permanente. Temos ainda empresas privadas que estão se equipando, mas ainda mesclam serviços produzidos aqui e fora do estado.
3- Principais questões atuais – Digitalização e restauro
A filosofia da preservação audiovisual esta sistematizada na obra do conservador audiovisual australiano Ray Edmonson, que vem atualizando seu trabalho numa contribuição fundamental para a área de preservação audiovisual. Vejamos:
.“Na maioria dos países – ... – não é mais necessário argumentar que as imagens em movimento e os sons gravados merecem ser preservados e exigem uma correta administração para que sobrevivam. Este princípio recebe pelo menos apoio verbal, ainda que as verbas não venham junto com o apoio. Sem diminuir a realidade desta última circunstância, vale anotar desde o princípio algumas questões:
. ‘você ainda não digitalizou seu acervo?’ é a pergunta simplista feita sistematicamente a arquivistas, ao que parece, por políticos, administradores e supervisores de orçamento dos arquivos. A pergunta e seus pressupostos são muito reveladores de desinformação, contudo a abrangência da tecnologia digital reconfigurou profundamente o paradigma da arquivística audiovisual, exigindo não apenas a expansão de habilidades e tecnologias como também exacerbando a divisão entre os arquivos que podem e os que não podem se adaptar às mudanças. A pergunta ignora também uma questão maior: a digitalização de materiais analógicos é uma coisa, mas a administração das obras audiovisuais produzidas digitalmente é outra. Quando digitalizamos materiais analógicos, a opção de voltar ao formato original e repetir o processo se mantém. Para as obras produzidas digitalmente, não há tal opção. Se não conseguimos acessá-las, elas podem rapidamente se perder.
. Obsolescência e “formatos tradicionais”: o corolário da digitalização é o dilema da obsolescência cada vez mais rápida dos formatos, com os arquivos precisando lidar com os mistérios da preservação digital, por um lado, e, por outro, com a necessidade de continuar preservando e atendendo às demandas de acesso aos “formatos tradicionais”, mais antigos, à medida que as opções tecnológicas diminuem.
. Valor de artefato: as cópias de filmes, os discos de laca, de vinil e outros suportes anteriormente encarados e administrados como bens de consumo substituíveis e descartáveis são agora percebidos como artefatos que exigem abordagens e manuseios muito diferentes. Essa mudança de percepção deu um novo status a, por exemplo, cópias em nitrato sobreviventes e ao conjunto de normas relativas a padrões de projeção, competências e habilidades. Muito rapidamente, à medida que os cinemas migram para sistemas digitais, testemunhar a projeção de cópias em película torna-se uma experiência arquivística especializada.
. Países em desenvolvimento: tradicionalmente, a arquivística audiovisual obedeceu a uma pauta basicamente euro-americana que dava pouca atenção às realidades dos países em desenvolvimento. Instalações, padrões e competências disponíveis no hemisfério norte podem simplesmente não existir no hemisfério sul, onde soluções mais simples, baratas e sustentáveis precisam ser encontradas. Atravessar esse abismo e compartilhar recursos, habilidades e descobertas são desafios importantes para a profissão. Padrões, regras e recomendações desenvolvidas na Europa e na América do Norte são relevantes para outros países e, quando possível, são adotadas por eles; mas, assim como na literatura profissional, a língua é um problema. A menos que sejam traduzidas, elas não podem ser utilizadas” (...)[2]
4- Como devemos estruturar a indústria local para conservação e manutenção da memória do cinema?
A estruturação de uma indústria depende de investimento e desenvolvimento de políticas públicas para sensibilizar a sociedade para a importância da preservação. Um exemplo real de desenvolvimento de indústria e de política de preservação é o Centro de Imagem Ritrovata - um dos maiores arquivos cinematográficos do mundo, cujo laboratório L'Immagine Ritrovata restaura e preserva o legado do cinema há mais de vinte e cinco anos. Suas restaurações são apresentadas regularmente em grandes festivais como Cannes e Veneza antes de sair para teatros de repertório em todo o mundo."— Um coletivo de 80 pessoas restaura cerca de 140 filmes anualmente. Desenvolve programas para alunos, projeta filmes em vários lugares do centro histórico de Bolonha, e apresenta uma preciosa seleção de filmes ou obras raras consideradas perdidas, recuperadas de arquivos históricos de vários países, e por vezes até restauradas.
Outro exemplo é a Cinemateca Brasileira onde se encontra o maior acervo de filmes da América do Sul, uma idealização do conservador, diretor, o mestre Paulo Emílio Sales Gomes. Nos últimos tempos a instituição ficou com as portas fechadas por pelo menos um ano e em seguida foi acometida pelo trágico incêndio que todos acompanharam. Então, desde 2022, a instituição é gerida pela Sociedade Amigos da Cinemateca, entidade criada em 1962, e que recentemente foi qualificada como Organização Social pelo Governo Federal. Seu acervo compreende mais de 40 mil títulos e uma vasta gama documental – com textos, fotografias e iconografias - sobre a produção, difusão, exibição, crítica e preservação cinematográfica. Lá estão depositadas coleções como a Vera Cruz, Atlântida, obras do período silencioso, além de acervos jornalísticos e de telenovelas da TV Tupi. Lá existem diversos laboratórios de processamento e restauração de filmes, mas sem contingente. O Brasil tem exemplos importantes, não podemos deixar de falar da icônica Cinemateca do MAM/RJ. O CEC tem lugar de destaque na sua ação de critica de cinema e produção intelectual. Podemos mencionar aqui também o professor Barros, pesquisador, mestre, que promoveu a salvaguarda da obra de Igino Bonfioli.
5- Quais estudos de caso de acervos conhecidos pelos especialistas podem ser citados?
Em Minas os acervos mais bem preservados são os do Humberto Mauro e Igino Bonfioli. O primeiro no CTAV – Centro Técnico Audiovisual do Rio de Janeiro e o segundo restaurado na Cinemateca Brasileira.
Participei da restauração da obra do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, realizado pela Filmes do Serro, pela Cinemateca Brasileira, Teleimage. Foram dois anos de trabalho, onde 14 filmes foram recuperados num projeto pioneiro de restauro digital de uma filmografia completa em alta definição, feita em 2005. E também pautei minha tese de mestrado no Registro Inicial do Documentário Mineiro – Igino Bonfioli e Aristides Junqueira.
6 - A sociedade organizada/ gestores públicos podem trabalhar juntos? Quais as políticas publicas devemos implementar para a conservação e divulgação de nossa história audiovisual?
Nos encontros de arquivos e acervos audiovisuais da ‘Mostra CineOP’, foi elaborado o Plano Nacional de Preservação Audiovisual (PNPA) que busca implementar uma política nacional como parte integrante das políticas públicas de cultura, que considere a complexidade e heterogeneidade do setor para promover o desenvolvimento necessário da área de preservação audiovisual no País.
Em Minas Gerais, durante a história, vários programas de incentivo ao cinema foram criados mas ou não chegaram a ser implementados ou duraram pouco tempo. Atualmente foi criado o Prodam – Programa de Desenvolvimento do Audiovisual Mineiro - que aguarda implementação.
[1] Correa Júnior.,Fausto Douglas - A Cinemateca Brasileira das luzes aos anos de chumbo –Sal Paulo, Ed.Edusp, 2010.
[2] Edmondson, Ray – Arquivística audiovisual : Filosofia e Princípios / Ray EdmonsonTrad.de Carlos Roberto Rodrigues de Souza, Brasilia :– UNESCO, 2017.
Alexandre Pimenta Marques é graduado em Comunicação Social, com habilitação em jornalismo. Fez mestrado em Artes Visuais, capacitação em cinema, na Escola de Belas Artes da UFMG, com a dissertação O Registro Inicial do Documentário Mineiro: Igino Bonfioli e Aristides Junqueira. É diretor da Pimenta Filmes e Edições, produtora cultural que há 20 anos realiza trabalhos de produção e desenvolvimento de projetos e mostras de filmes cinematográficos. É também filiado à Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA).
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