top of page

No quintal de casa eu faço arte

O quintal de casa, sobretudo de residências de quebradas e periferias urbanas, é um dispositivo que já foi cena para diversos filmes ao longo da cinematografia brasileira, como por exemplo no trabalho contemporâneo de André Novais Oliveira em retratar tal ambiente. Ao passo que o quintal se situa entre uma casa e a casa do vizinho, uma casa e a rua, uma casa e um terreno baldio, não se trata apenas de uma localidade de passagem, mas também de permanência. Esse espaço pertence à ordem do entre lugares, algo intervalar, que divide outras duas áreas. Animais domésticos, plantas, flores e crianças povoam o recinto durante o dia e dão vida a esse entre-lugar que é palco para o filme Estudo para uma pintura o lavrador de café (Desali e Rafael dos Santos, 2024).


O curta é feito com o propósito de dar uma moldura subjetiva ao seu último plano, ou melhor, à sua última imagem. O título já é suficientemente claro sobre o gesto que o filme opera: constituir subjetividade a imagem estática. A pintura em questão retrata uma criança negra usando roupas brancas, em frente a porteira de madeira de sua casa. Ela está em pé e seu corpo está parcialmente virado para o portão, contudo, seu rosto está voltado para frente e seus olhos encaram fixamente o retratista, o espectador e o dispositivo que o registra. O quadro é feito com material que se assemelha à tinta guache e as cores amarelo e roxo predominam o segundo plano. Seus traços não são de ordem naturalista e dão a ver o movimento e as manchas feitas pelo pincel sobre a superfície, algo como uma evidência opaca deixada por seu autor. Não apenas na pintura, mas em todo o curta há uma evidente dimensão de artesanato, algo manufaturado, desde o manuseio do dispositivo até os intertítulos escritos à mão.


Trata-se de um filme feito no quintal de casa com as pessoas que habitam ou circulam por ali. Acompanhamos uma tarde nesse território e nas suas redondezas em que nenhum desses personagens é identificado. Vemos um adulto arando a terra, animais transitando, uma criança plantando semestes numa terra úmida, um menino assistindo uma live de Minecraft e várias crianças brincando de ciranda. O tom dessas cenas é de cotidianidade, algo que acontece corriqueiramente naquele espaço. A câmera, por sua vez, registra tais acontecimentos ao modo de um realismo documental que é corroborado pela materialidade de seus planos. A imagem pixelada e de baixa resolução dá a impressão de que estamos diante de um filme caseiro e quase artesanal, o que de fato é, em certa medida.


Tal fazer fílmico, junto às crianças, trata-se também de registrar esses modos de existência, seus sons e a sonoridade que as cercam, suas brincadeiras e sua cotidianidade para além daquela imagem estática. Não que a pintura tenha menor “valor” em relação ao audiovisual, mas, neste caso, ela é motivadora da da imagem em movimento. O “estudo” em vídeo dá uma outra moldura subjetiva para a pintura, ao passo que a tela também é motriz desse registro. A banalidade desses eventos pouco dramáticos alude ao “estudo” para a pintura que encerra o filme. O gesto central que é apresentado em Estudo para uma pintura o lavrador de café trata-se de expandir uma borda no campo imaginário e subjetivo daquele quintal.

 

Este texto crítico foi escrito por Renan Eduardo, crítico e pesquisador, para a obra "Estudo para uma pintura o lavrador de café" (Warlei Desali, Brasil, 2024), exibido em 23 de fevereiro de 2024, na programação do Prêmio Humberto Mauro.

 

Kommentare


bottom of page