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“Não assistam a esse filme! Vão embora!”

O terror e a crônica no cinema de José Mojica Marins


por Marcelo Miranda



Até 1964, o horror no cinema brasileiro era praticamente inexistente, com apenas alguns indícios em comédias e melodramas, sem relação mais direta e orgânica com os elementos que à época já caracterizavam histórias de medo e insólito. Isso mudou com À Meia-Noite Levarei Sua Alma, de José Mojica Marins, o primeiro filme brasileiro a se afirmar no gênero de horror. Mojica, nascido em 1936 em São Paulo, cresceu no ambiente de uma sala de cinema administrada por seu pai e desenvolveu relação instintiva com filmes desde a infância, fascinando-se especialmente por títulos de terror dos estúdios Universal e recriações de figuras como Drácula, lobisomem e monstro de Frankenstein. Na formação autodidata, Mojica começou a fazer filmes ainda criança e só foi arriscar uma “fita de terror” em meados dos anos 1960, depois de ter um pesadelo no qual via a si mesmo sendo puxado para o próprio túmulo onde estava enterrado.


Zé do Caixão apareceu nas telas em três filmes em sequência: À Meia-Noite Levarei Sua Alma, depois  Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) e, enfim, O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968). Não se trata de uma trilogia, já que o terceiro é composto de três episódios independentes, apenas apresentados pelo coveiro e com roteiro do escritor Rubens Francisco Lucchetti. Também não foram as únicas aparições de Zé do Caixão no cinema, vide trabalhos posteriores nos quais Mojica insere o coveiro como imagem de perturbação mental, casos de Ritual dos Sádicos (1969),  Exorcismo Negro (1974) e Delírios de um Anormal (1978), ou mesmo concluindo sua saga das trevas em Encarnação do Demônio (2008), ali sim formando a trilogia. Mas foram aqueles três filmes iniciais que popularizaram o personagem como ícone do imaginário. A mistura de elementos do horror a crenças populares brasileiras criava uma abordagem única, acrescida da perturbação que era ver um protagonista reconhecido pela violência, sadismo e comportamento agressivo em meio a momentos de humor e ironia.


MOJICA, HOMEM DE TERROR

À Meia-Noite Levarei Sua Alma era o terceiro longa-metragem (concluído) de José Mojica Marins e aquele com o qual criaria uma infinita, celebrada e controversa mitologia em torno do protagonista. Zé do Caixão é construído como típico personagem de horror, desde a indumentária até o comportamento monstruoso. Mojica, que escreve, produz, dirige e protagoniza o filme, acumula o máximo possível de ações detestáveis num único homem (visto à luz das questões contemporâneas do século 21, À Meia-Noite... é um festival de situações e imagens passíveis de cancelamento). Só que nada é gratuito ou celebratório na jornada rumo ao inferno de Zé. Toda a misantropia e ceticismo debochado voltará nas imagens espectrais de fantasmas e mortos-vivos sedentos por levá-lo para debaixo da terra. 


Trata-se, afinal, de um filme profundamente crente sobre o poder do sobrenatural e da força da fé e das crendices populares. Zé é violentamente castigado por suas ações, a maior delas a de não acreditar que existam almas escrutinando seu comportamento carnal. “A quem pertence a terra? A Deus? Ao demônio? Ou aos espíritos desencarnados?”, esbraveja um desesperado coveiro. Comer aquele pedaço de carneiro na famosa cena da procissão em À Meia-Noite Levarei Sua Alma custa caro a Zé do Caixão.


A selvageria está também na postura sempre agressiva de Zé do Caixão: em seus movimentos de corpo e de impulso, nas sobrancelhas irrequietas, nos lábios tremidos, na impetuosidade da provocação. É, sem constrangimento, um personagem desagradável, em filmes que vão se modelando em torno dele, numa série de relações destrutivas que promove e cobram preço. Mojica usa arquétipos e ícones de histórias de horror que a gente ouve desde criança, como a bruxa a segurar um crânio e advertir o público do que virá (“Não assistam a esse filme! Vão embora!”), os raios que cortam os céus na noite escura, os bichos peçonhentos, a ventania que sacode árvores no cemitério, os túmulos que parecem se mexer. Diferente dos monstros clássicos de filmes que tanto encantaram Mojica na infância, Zé do Caixão é criação original de cinema. As unhas gigantes, a predileção por carne na Sexta-feira Santa e a profissão de coveiro em algum canto do interior de São Paulo dão toques deliciosos de brasilidade, ao mesmo tempo que sua universalidade e vanguardismo coloca Mojica ao lado de outras lendas da criação no gênero, como Terence Fisher, Mario Bava, Dario Argento, Jean Rollin e John Carpenter.


A violência perpetrada por Zé do Caixão não tem limites nem pudores. Os filmes têm total consciência disso e se aproveitam do eventual choque do público para irem sempre um pouco mais longe (e não é de ficção que se trata?). A perturbação às vezes pode ser grande pelo fato de o espectador enxergar ali um monstro brasileiro, falando português, desafiando as crenças típicas do catolicismo, desejando “perpetuar seu sangue” a todo custo, um sujeito eugenista que se acha nobre e superior, gastando desprezo e petulância com quem ele considera inferior e a quem não mede escrúpulos para tirar do jogo em prol de seus interesses. 


O que aflige em À Meia-Noite Levarei Sua Alma – e o excesso de exposição de Mojica em anos posteriores, ao macaquear a própria criação, trajando e falando como o coveiro em programas de TV e esquetes de humor especialmente nos anos 1990, não diminui essa força em absolutamente nada – é o fato de os filmes serem de e para Zé do Caixão. Ele é o protagonista absoluto, a narrativa o acompanha passo a passo, o arco de suas artimanhas (e posterior tragédia) é que move a ação. Se alguém ainda olha para o cinema como arte de empatia e identificação, bem, esses filmes não vão cumprir os requisitos.


Mas, como Hitchcock mostrara em Psicose (1960), a aproximação entre o olhar do personagem monstruoso e o olhar do espectador não precisa fazê-los necessariamente compatíveis. Quando Norman Bates espiona a nudez de Marion Crane pelo buraco da parede de seu escritório, a câmera “assume” a visão do personagem. Ali está um dos planos subjetivos mais perturbadores da história do cinema: o olhar que faz coincidir o espectador e o voyeur posteriormente revelado um psicopata. [No mesmo ano de 1960, outro filme fundamental fez movimento similar, porém com menos repercussão imediata: A Tortura do Medo, realizado na Inglaterra com direção de Michael Powell.]


A noção de “identificação”, tantas vezes imposta às narrativas cinematográficas, está muito mais no âmbito da convenção do que de alguma regra pré-concebida. Por sua natureza mimética, o cinema constantemente é cobrado por “representar” com fidelidade seja lá o que se chame de realidade. Pior: cobra-se que personagens de ficção façam as vezes de ponto de identificação positiva com o espectador e garantam um tipo de bem-estar artificial que sirva de expiação. Pois em À Meia-Noite Levarei Sua Alma, o protagonista só serve de “identificação” possível com quem pactuar de suas atrocidades. Mojica, no controle da criação, convida-nos a testemunhar o grotesco e desafia os limites do olhar e da representação como nunca antes fora feito na produção brasileira.


Não bastasse a provocação com seu personagem – num filme, jamais esqueçamos, lançado no ano do golpe militar e inadvertidamente respondendo a ele –, Mojica realiza um admirável prodígio técnico e estético. Se o orçamento irrisório o obrigava a reaproveitar cenários (a maior parte das cenas acontece num mesmo espaço físico, devidamente refeito a cada take para parecer outro lugar) e a floresta é toda montada de papelão, a consequência disso é a selvageria na abordagem visual e sonora. Como escreveu o crítico Rogério Sganzerla, “cada fotograma filmado por José Mojica Marins respira cinema e somente cinema. Tudo é inseguro, pode explodir a qualquer instante, a exasperação domina (…), arrisca-se entre o tudo e o nada. Do nada faz tudo, ao contrário daqueles que em cinema têm tudo e não fazem nada!”. 


MOJICA, O CRONISTA

Muito celebrado por esses aspectos do macabro e do grotesco, o cinema de José Mojica Marins também guarda um aspecto menos comentado: o do autor como cronista social e político de um Brasil adoentado. Pela vinculação ao gênero, boa parte de sua obra ficou anos sendo pouco abordada no que tem de tão ou mais essencialmente brasileiro, que seria a precisão no trato e na representação de uma sociedade patologicamente sádica e reacionária. 


Por vários outros filmes, Mojica seguiu a crônica social selvagem que começara em À Meia-Noite Levarei Sua Alma. Ora refletindo sobre sua própria criaçãoora retratando diretamente a classe burguesa na qual enxergava os malefícios sociais e econômicos, mas principalmente morais, que imperam no Brasil (O Estranho Mundo de Zé do Caixão; Finis Hominis, 1971). Esse conjunto de filmes explicita a percepção de Mojica de que o país historicamente se mantém por ações de opressão e violência, sejam diretamente contra a carne, a pele ou a sexualidade das pessoas, seja por discursos demagógicos, populistas ou autoritários. 


Dois filmes em especial, menos comentados que as incursões pela mitologia do Zé do Caixão, são exemplares nesse sentido. Os enredos de ambos, não à toa, parecem retirados das manchetes de jornais sensacionalistas – que, aliás, tanto exploraram a figura do Zé do Caixão décadas depois. 


Um é Inferno Carnal (1976), no qual o cientista brilhante interpretado por Mojica quase não dá atenção para a esposa, que planeja matá-lo (com a ajuda do amante) e roubar sua fortuna. Como é relativamente comum na filmografia do cineasta, trata-se de um conto moral em que ações de destruição perpetradas pelo protagonista são devidamente punidas no desfecho da história. Era a forma mais direta de Mojica tratar das culpas e ressentimentos que movem as classes abastadas e anestesiam o indivíduo em relação às consequências de seus atos. O caráter de crônica da crueldade se amplifica no retrato falsamente caricato dessas classes, tratadas pelo olhar do filme como um coletivo de tolos superficiais dispostos a qualquer sordidez. No que isso se diferia da classe média-alta brasileira da ditadura, com empresários financiadores do regime denunciados tempos depois por filmes “corretos” como Pra Frente Brasil (Roberto Farias, 1982)? Em Mojica, a grosseria da representação era a chave para se apreender a representação da grosseria.


Esse processo se potencializa em Perversão (1979), certamente o melhor filme dentre os menos comentados da vasta filmografia de Mojica. Ele próprio interpreta um personagem tão memorável e detestável quanto Zé do Caixão: o playboy Vitório Palestrina, predador sexual que vive de ostentar a fortuna, de promover portentosos convescotes e de abusar de mulheres física e psicologicamente. Num de seus ataques, ele arranca o mamilo de uma garota e depois o expõe num vidro, como troféu, para admiração de seus colegas novos-ricos, que o parabenizam pelo gesto e pelo “prêmio”. Por sua vez, a mulher violentada é desdenhada pelas autoridades, rechaçada pela comunidade e enlouquece. Ora, no que essa representação nega fidelidade às formas brutalizantes com que se constrói a sociedade patriarcal brasileira há décadas? Palestrina se legitima socialmente em sua violência predatória contra quem ele considera inferior. 


Para as ações monstruosas de Palestrina, contraparte rica do pobretão Zé do Caixão, existe a plateia que o aplaude e que se projeta nele (dentro e fora do filme). Essa plateia sedimenta as bases de uma sociedade adoentada. Mojica compreendia e abordava essa relação sem fazer sociologia ou discurso, nem muito menos se render ao bom gosto. Perversão é deliberadamente desconfortável. E é também outro conto moral do cineasta, o que significa que haverá um plot twist para “ensinar” alguma coisa ao protagonista prepotente e violento, ao mesmo tempo em que se aponta o ciclo interminável de destruição como intrínseco à relação histórica entre indivíduos. Luta de classes e de poder, opressão, subjugação, retaliação: há um universo inteiro de emaranhados de composição social em Perversão que colidem na sequência final. Um curto-circuito entre sensualidade (é uma das cenas mais verdadeiramente excitantes no cinema de Mojica) e explosão de violência. O gozo se equaliza com o sangue, só que a inversão é total: se, no começo do filme, Palestrina obriga a mulher ao ato sexual para lhe arrancar o mamilo, no desfecho ele é levado a crer que chegou ao ápice da conquista, antes de ser emasculado. O urro do milionário, tão significativo que puxa outras cenas-chave do filme para fazê-lo se prolongar mais e mais, é tanto de dor quanto de derrota, humilhação e antigozo. A vingança é perfeita porque ela não se fixa no simplismo do “olho por olho”. Ela atinge a essência do que forma tipos como Palestrina.


Esses lumiares de representação vistos em Inferno Carnal Perversão aparecem em todo o cinema de Mojica, com mais ou menos intensidade, sempre na chave da brutalidade e do feio/grotesco, na consciência de um cinema subdesenvolvido produzido num país colonizado à base de muito sangue derramado. Sob esse aspecto, Mojica só via sentido em ser o mais honesto possível. Ou, como ele próprio diz, em depoimento registrado em Audácia! (Carlos Reichenbach e Antonio Lima, 1970), o artista brasileiro, para ser autêntico, deve “afastar o manto nojento da demagogia” e procurar ser o que realmente é no intuito de “dar mais expressão ao nosso eu”. José Mojica Marins não fazia cinema “bonito”. Fazia, sim, um dos cinemas mais brasileiros que se pode pensar. E o Brasil nunca foi para amadores.


 

Marcelo Miranda é jornalista, crítico de cinema, pesquisador e curador.

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