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MUITOS VENTRES PARA O DEMÔNIO: PRESENÇAS FEMININAS NO CINEMA DE JOSÉ MOJICA MARINS

por Beatriz Saldanha



Em 1964, com À meia-noite levarei sua alma, José Mojica Marins apresentou ao mundo seu personagem Zé do Caixão, que se tornou o símbolo do horror brasileiro dentro e fora do país, e cuja singularidade até hoje impressiona por sua ousadia. A criação de Zé coincide com o cenário que se desenvolvia naquela época a partir da modernização do gênero, redirecionando seu público-alvo para plateias mais maduras – foi quando surgiu em diversos países uma profusão de obras provocadoras apostando no apelo do sexo e da violência para atrair um público ávido por novidades. Ainda assim, sejam os roughies nos Estados Unidos, o pinku eiga no Japão ou o eurotrash desavergonhadamente erótico, o fato é que nada se compara à crueza e à concretude desconcertantes do cinema de José Mojica Marins, que segue causando desconforto mesmo para quem está habituado aos excessos dessa explosiva combinação de sexo e terror. E muito desse impacto reside na misoginia retratada em sua obra.


Agente funerário de uma cidadezinha do interior, Zé do Caixão aterroriza a população com sua natureza sádica, matando indiscriminadamente homens e assediando, violentando e torturando as mulheres. A única parcela poupada – e protegida – de seu comportamento sociopata são as crianças, que, segundo um dos muitos aforismos proferidos por ele no decorrer de sua saga, são os herdeiros da Terra, puros e livres de crenças limitantes – “pena que quando crescem se tornam imbecis”. Enquanto coveiro, Zé lida com a morte em seu cotidiano, além de agir ele mesmo como um ceifador, o que lhe confere uma espécie de ultra percepção da finitude do corpo. Aliado ao seu egocentrismo e a um ceticismo exacerbado, Zé do Caixão tem como objetivo principal gerar um filho que dê continuidade ao seu sangue, e, evidentemente, a mulher é um elemento fundamental – ou uma etapa a ser cumprida – para a execução de seu plano.


No começo do filme, Zé é casado com Lenita (Valéria Vasquez), uma dona de casa submissa, porém não muito ingênua, e que, ainda que não concorde com as heresias do marido, capitula e lhe prepara uma carne de carneiro para que ele coma de maneira desafiadora diante da procissão da Sexta-Feira Santa – cena que ela observa em silêncio. Apesar de ser uma esposa obediente, o que agrada a Zé por seu perfil dominador, Lenita é infértil e, por isso, não pode oferecer ao marido aquilo que ele mais deseja. Ele começa, então, a investir em outras mulheres na busca por aquela que atenderá aos critérios para gerar seu filho perfeito. É quando o vilão tenta se aproximar de Teresinha (Magda Mei), noiva de Antônio (Nivaldo de Lima), seu melhor amigo. Ela o rejeita e Zé prontamente associa essa recusa a Antônio e Lenita, dois estorvos em seu caminho, logo tratando de se livrar de ambos, reservando uma dose ainda maior de crueldade para a esposa, colocando uma tarântula sobre seu corpo vulnerável. Antes de matá-la, afirma estar livrando-a do pecado de pertencer a um outro homem – ou seja, caso ela contraísse um novo casamento. Sendo Zé do Caixão um herege, é curioso como a ideia de pecado surge aqui convenientemente como uma motivação para as suas crueldades; apenas uma das muitas contradições que permeiam o universo do agente funerário, intrínsecas ao fascínio de sua obra.


“A mulher que não concebe filhos não precisa de cuidados”, sentencia Zé do Caixão ao falar sobre a infertilidade da esposa. Os anos 1960 foram decisivos para as pautas feministas em todo o mundo, com avanços no meio trabalhista, mas também na esfera doméstica, em que os direitos reprodutivos começaram a ser assegurados. Havia, então, com o acesso às pílulas contraceptivas a partir de 1962, uma ameaça iminente de deslocamento da posição da mulher no lar e na sociedade, já que isso implicaria um certo grau de autonomia sobre o controle do corpo e do próprio destino. Não é de se estranhar, portanto, que as mulheres sejam as principais vítimas de Zé do Caixão, que, com sua personalidade tirânica e autocentrada, acaba sendo um representante-modelo do ranço que parte da população masculina sentia ao observar as mudanças que ocorriam na sociedade em prol da emancipação feminina. Movimento semelhante vai se reproduzir com a implementação da lei do divórcio em 1977, com o tema sendo abordado direta ou indiretamente em diversos filmes realizados na Boca do Lixo e dando início a um ciclo de histórias “revanchistas”. É o caso de A mulher que põe a pomba no ar (1978), longa-metragem codirigido por Rosângela Maldonado e Mojica (que assina como J. Avelar). Nele, a própria Rosângela interpreta a personagem-título, uma cientista que, após ser traída pelo marido, dedica-se à invenção de um método para se vingar de homens adúlteros. Ao descobrir uma maneira de transformar pessoas em criaturas aladas, faz com que duas jovens se tornem mulheres-pomba e as utiliza como armas para atacar os maridos infiéis no meio do ato sexual com suas respectivas amantes. Ainda que reproduza uma série de clichês do cinema “masculino” feito na Boca do Lixo, como a ultra sexualização dos corpos femininos, preconceitos contra minorias sociais e até a negligência do tema do estupro em favor do apaziguamento entre os casais, A mulher que põe a pomba no ar se destaca no que diz respeito ao protagonismo feminino, além de ter valor catártico por promover uma vingança matrimonial simbólica. Aliás, o direito à desforra é de certa forma concedido às personagens do filme em episódios O estranho mundo de Zé do Caixão (1968), com quatro irmãs, em conluio com o pai delas, matando e arrancando os olhos de um grupo de estupradores, e a esposa que termina se rendendo ao macabro experimento antropológico de Oãxiac Odéz e se convertendo em uma espécie de canibal ao devorar o próprio marido.


Voltando a À meia-noite levarei sua alma, quando Zé do Caixão consegue se livrar daqueles que ele considerava um obstáculo para chegar a Teresinha, a suposta mulher ideal, ele vai até a casa da moça e, numa tentativa de galanteio, a presenteia com um passarinho. Quando percebe que suas investidas não deram resultado, seus olhos ficam injetados de ódio e ele parte para a agressão física, pois não suporta ser contrariado. Em uma das cenas mais dramáticas da filmografia de Marins, Zé espanca e estupra Teresinha, que, na tentativa de resistir, acaba esmagando o passarinho em sua mão. Um instante preconizador do destino da própria moça, que desiste de viver depois de ser desgraçada por Zé. É bastante significativo, aliás, que ele tente gerar esse filho através do estupro, um ato de violência.


O sexo no cinema de Mojica raramente é filmado por uma perspectiva sã, quase sempre associado a parafilias e práticas insalubres, como fica evidente em O despertar da besta (1970), em que propõe um ensaio cínico sobre os indivíduos e seus papéis sociais, sobre jogos de poder entre os homens e as mulheres, o cafetão e a prostituta, o empregador e a candidata, o traficante e os usuários e, por fim, a matriarca e seus subordinados. Neste filme, as cenas de sexo são doentias e trazem, em sua maioria, personagens angustiadas, humilhadas, violentadas e, num caso mais extremo, morta de maneira brutal, o que soma à tendência mojicana de representar a mulher de maneira domesticada e absolutamente submissa. O cineasta tinha consciência dos traços controversos de seu personagem: neste filme-terapia, Zé do Caixão serve tanto como legitimador do machismo e misoginia (para o contador vivido por Ozualdo Candeias) quanto como “protetor das mulheres” (para a madame interpretada por Lourdes Ribas) ou ainda como “o inferno na própria carne” (para a balconista Andreia Bryan). Dessa maneira, Mojica transfere ao espectador o fardo de interpretar as implicações de seu personagem, investindo-o de uma complexidade que pode escapar em uma análise precipitada. Porém, é outra criação mojicana que demonstra alguma empatia pelo feminino: o místico/louco Finis Hominis, que ele interpreta nos longas-metragens Finis Hominis (1971) e Quando os deuses adormecem (1972). Espécie de profeta messiânico tido como um salvador da humanidade, Finis é uma figura excêntrica que perambula pelas ruas e resolve conflitos proferindo lições de moral e provocando reflexões. No espectro oposto do discurso inflamatório de Zé do Caixão, sua contraparte mística é adepta de palavras apaziguadoras, e em suas andanças aleatórias, protege uma mulher adúltera do apedrejamento (Teresa Sodré), e impede diversos atos de violência contra personagens femininas no acachapante Quando os deuses adormecem, no qual ele simbolicamente liberta diversas mulheres de situações de violência.


Mojica gostava de fantasiar sobre o impacto de Zé do Caixão na sociedade e esse tema foi abordado diversas vezes dentro de seus filmes, profundamente metalinguísticos, o que certamente faz dele o cineasta brasileiro que mais refletiu sobre as próprias criações dentro da sua obra. O fenômeno de bilheteria O exorcista (The Exorcist, 1973), de William Friedkin, suscitou uma série de derivados pelo mundo, entre eles Exorcismo negro (1974), dirigido por Mojica e produzido por Aníbal Massaini Neto. Nele, Mojica interpreta a si mesmo no meio de uma grande crise criativa, o que o leva a viajar para a casa de campo de um amigo para espairecer e trabalhar em suas ideias, quando os membros da família começam a ser “incorporados” por Zé do Caixão, que aqui se torna o próprio Diabo. A trama, quando desvendada, mostra que sua aliada, a bruxa Malvina (Wanda Kosmo), ajudou Lúcia (Geórgia Gomide) a forjar uma gravidez lhe entregando sua própria filha, e agora que a moça está noiva ela a exige de volta para que se case com o homem que ela determinar. De uma maneira menos direta, mas ainda determinante, Mojica volta a representar seu conceito da mulher como posse masculina, como um objeto a ser disputado e presenteado – e, completando sua ideologia, a criança como símbolo de pureza e capaz de derrotar o mal: neste caso, uma menina, Betinha (Merisol Marins, filha de Mojica).


Em Delírios de um anormal (1978), filme que em grande parte é um apanhado de cenas de obras anteriores e que funciona também como uma síntese não-canônica do personagem mais importante criado por Mojica, um renomado psiquiatra tem pesadelos de que Zé do Caixão quer roubar sua esposa para gerar nela o filho perfeito. Mojica – como personagem da história – é então convocado pelo grupo de psicólogos que está trabalhando no caso para, através de uma sessão de hipnose, demover o homem da ideia de que o personagem do agente funerário existe na vida real. Na mente do marido, entretanto, se dá um embate pela “posse” da mulher, que seria a parceira “perfeita” para o vilão. Enquanto Zé do Caixão vê na mulher um veículo para perpetuar o seu sangue, o marido repete, em negação, “ela é minha, ela me pertence”, alucinando com imagens da esposa imersa em um mundo de sexo, fetiches, tabus e outras perversões do inferno carnal de Zé do Caixão. Ainda que soe como uma egotrip de Mojica mensurar tão alto o impacto que ele teve no público, ele termina promovendo uma reflexão sobre o quanto a mulher era vista como uma mera propriedade na sociedade brasileira da época, e não como um indivíduo autônomo e capaz de tomar suas próprias decisões.


Curiosamente, é em Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967), o segundo filme da saga de Zé do Caixão, que encontramos aquela que talvez seja a personagem feminina mais independente do cinema de Mojica. Trata-se de Laura (Nádia Freitas), uma moça ousada que contraria as ordens do pai e do irmão – ou seja, livrando-se do domínio masculino – para voluntariamente se aliar a Zé do Caixão em sua missão de gerar um filho perfeito, uma criação mútua. Cética, fria e cruel, Laura oferece a Zé seu ventre para que sirva de incubador de uma criatura que irá provar a superioridade de seu sangue. A moça se mostra ainda mais indiferente ao sofrimento alheio do que seu parceiro: não apenas despreza as outras mulheres que foram “testadas”, torturadas e mortas por Zé do Caixão, como é incapaz de se comover mesmo quando Zé vive uma crise de remorso ao descobrir que uma de suas vítimas estava grávida. O epílogo da trilogia, o tardio Encarnação do demônio (2008), encerra com uma imagem que tenta fazer justiça à grandiosidade de Zé do Caixão no imaginário cinematográfico brasileiro: sete mulheres, de diferentes etnias, grávidas do funerário, indo visitar seu túmulo. Dentre elas está a Dra. Hilda (Cléo de Páris), uma cientista eugenista que de bom grado se deixa ser dominada por ele em seu plano de perpetuação pelo sangue.


Encerrando esta breve galeria de personagens femininas do cinema mojicano, são justamente as bruxas – Eucaris de Morais em À meia-noite levarei sua alma, Helena Ignez e Débora Muniz em Encarnação do Demônio – as únicas que ousam enfrentar Zé do Caixão. É interessante que essa ousadia venha justamente de mulheres idosas, costumeiramente estigmatizadas pela sociedade justamente por não terem mais “função” enquanto objeto sexual, nem capacidade de gerar filhos. Em sua sabedoria ancestral, as bruxas o amaldiçoam e garantem que ele vai pagar por seus pecados. Funcionam como alertas de suas transgressões e portadoras de um conhecimento místico que corrói as convicções de Zé e o fazem questionar suas certezas – seja por meio de castigos sobrenaturais ou perda do controle mental, a dúvida suscitada pelas pragas e maldições de bruxas propiciam a derrocada de Zé do Caixão. De maneira consciente ou instintiva, Mojica parecia sugerir que acima de Zé do Caixão estava uma personagem de grande poder.

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