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Mapeamento Acessa Mais: Deficiência em tela

por Estela Lapponi


Você sabia, que desde 1982 se celebra no dia 21 de setembro o Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência (instituído pela Lei nº 11.133/2005)?


O dia e mês foram escolhidos pelo fato de marcar o início da Primavera tendo na árvore a simbologia máxima do nascimento das reivindicações de cidadania e participação plena em igualdade de condições.


Para que a participação da Pessoa com Deficiência seja plena, se faz necessário o cultivo de uma Cultura do Acesso, na tecitura social, cultural e política do país.


Quarenta e dois anos depois e em continuidade desta Luta iniciada por nossos ancestrais Não genéticos[1], realizamos mais um gesto para visibilizar a Arte e Cultura produzida por Artistas com deficiência no Brasil.


Por isso, o movimento de Artistas DEFs[2] brasileiro está em festa!


Dia 13 de setembro, será lançado nacionalmente, o formulário online do Mapeamento Acessa Mais. Um Mapeamento, que visa identificar “Quem são”, “Onde estão” e “O que fazem” os artistas e agentes culturais com deficiência e as pessoas com e sem deficiência da área de Acessibilidade Cultural de todo território brasileiro. Para que fique claro, exemplifico abaixo o que cada uma dessas categorias significa.


Artistas com deficiência que atuem com artesanato, artes visuais, audiovisual, circo, dança, literatura, música, performance, teatro e cultura popular.


Agentes culturais com deficiência, ou seja, pessoas que trabalham com produção, curadoria, gestão e nas áreas técnicas como iluminação, cenografia, cenotecnia, trilha sonora, figurino, operação de som e luz, etc.

Profissionais com e sem deficiência que trabalham com acessibilidade cultural, ou seja, pessoas que trabalham com audiodescrição, tradução de Libras, consultoria em acessibilidade, entre outras.

As linguagens que o Mapeamento abrange são: artesanato, artes visuais, audiovisual, circo, dança, literatura, música, performance, teatro e cultura popular.


Mas, porquê mapear profissionais com deficiência da área cultural, no Brasil?


A luta civil iniciada nos anos 80 pelos ativistas com Deficiência, é também uma luta cultural, uma vez que vivemos em uma sociedade cultivada na tecnologia de opressão chamada Capacitismo[3]. O que quero dizer é, que como em todas as esferas e inclusive o Mercado Cultural, que é constituído de pessoas que são parte desta sociedade tecida pela cultura capacitista; não está ileso de cometer atos capacitistas; mesmo o Capacitismo sendo considerado crime no Brasil, desde 2015, de acordo com o artigo 88 da Lei 13.146/15.

Cultura é um conceito amplo que se refere à combinação de inúmeros fatores como tradição; crenças; hábitos; produção artística, produção de conhecimentos, cultivos e muitos outros fatores e aspectos de um povo, de uma região, de uma nação.

O hábito, costume e até de certa forma a tradição do Mercado, como um todo e inclusive o Cultural brasileiro, é a de tratar a produção de conhecimento, seja em qual for o contexto, da Pessoa com Deficiência como algo de menor valor, o absorvendo de forma pontual, quando não, AINDA em muitos lugares, sob a perspectiva assistencialista.


Um exemplo vivo e atualíssimo desta cultura capacitista, é a limitada transmissão das Paralimpíadas em TV fechada e monopolizada por um só Grupo de TV; o extremo oposto ao que foi e sempre é a cobertura das Olimpíadas, com horas e horas de transmissões em TV aberta, fazendo o povo brasileiro vibrar junto com os atletas; já com os paratletas, poucos vibram e poucos assistem ou têm o acesso para assistir ao evento mundial.


O que será, que vem primeiro?

A limitada transmissão em TV Fechada e portanto, nem todos têm acesso e por isso, "não se interessam" … OU … as pessoas "não se interessam" pelos jogos Paralimímpicos e por isso a transmissão é limitada à TV Fechada?


E sabe de uma coisa?

Até o momento, nossos paratletas são responsáveis por 30 medalhas conquistadas nas mais diversas modalidades esportivas, colocando o Brasil em 5⁰ lugar no ranking das Paralimpíadas Paris 2024.


Mais um pouquinho de história, já que me refiro às Paralimpíadas.


Em 2016, uma famosa revista criou uma desastrosa e capacitista campanha com o objetivo de dar visibilidade aos jogos paralímpicos, utilizando artistas famosos sem deficiência "fotochopados" nos corpos de paratletas reais, praticando assim outra tecnologia do capacitismo: o cripface[4].


O cripface é bastante praticado na linguagem do Audiovisual e além dele ser um obstáculo na contratação de uma atriz/ator DEF para interpretar o papel de uma personagem com deficiência, impossibilitando o exercício da profissão por parte destes profissionais, sua prática gera efeitos colaterais no que tange à narrativa cinematográfica, pois em não se tendo nenhum DEF na produção, ou seja, ocupando espaços de decisão criativa, incorrem no equívoco de uma narrativa, que reforça o estereótipo (devido a cultura capacitista na tecitura socipolítico e cultural), que se tem da Pessoa com Deficiência.


A estereotipagem é um modo de preservação da cultura capacitista. Assim como, a psicóloga, ativista e diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades Cida Bento fala sobre o Pacto da Branquitude[5], poderia ousar dizer, que o cinema ao ignorar e não contratar DEFs em suas produções, tanto para estar na frente quanto atrás das câmeras, atua no Pacto da Bipedia[6], que visa a manutenção do poder de decisões e de discurso simbólico, neste caso, da narrativa cinematográfica.


Talvez, você, bípede enquanto me lê, queira me dizer:

"Ah! Mas, é difícil encontrar atriz/ator "PCD"[7]!"

Eu te respondo: Para isso existe Direção de Elenco, que faz pesquisa de atriz/ator. Esses profissionais são essenciais numa produção cinematográfica.


E talvez, você me rebatesse:

Mas, eu não tenho verba para contratar uma Direção de Elenco.

E eu te responderia:"Existem plataformas de elenco, existe post em redes sociais, existe busca/pesquisa e existirá, num futuro muito próximo, o Mapeamento Acessa Mais."


E continuando nesse nosso diálogo fictício, baseado em fatos reais, talvez você me retrucasse: "Ah! Mas, eu sou obrigada a contratar "PCD" pra atuar no meu filme, só porque eu tô produzindo um filme sobre "PCD" ? E se a atriz/ator não for boa/bom, serei obrigada a contratar mesmo assim? Eu, hein?! Eu contrato quem eu quiser, o filme é meu!"


Eu te respondo:

Outro aspecto que observo nas produções do audiovisual (cinema, novela) é que preferem investir, tempo e verba com preparadores de elenco, na deficiência fictícia - cripface - de atores bípedes, para executarem o papel com maestria, mas não vejo esse mesmo investimento no talento de atriz/ator DEF, porquê? Sem dúvida o filme é teu e tens o direito de contratar quem quiseres e assim, acabaste de ganhar o selo "capacitista irremediável", pois em pleno seculo XXI, em que as questões identitárias estão sinalizando e nomeando as opressões, te recusas à rever a tua prática, que é desavergonhadamente opressiva.


A estereotipagem sobre a "PCD", transforma-a em um "Outro", que é lido como fora do que é "Normal", criando uma binariedade entre estes. Esse "Outro" é colocado de uma maneira, em que se cria um mínimo de identificação com ele para então distanciar, colocando assim a "mazela" num "Outro", que nao sou eu - "ainda bem, deus me livre, eu hein?!" - este é o inconsciente coletivo dos que se entendem como “ normais” (contém ironia).


Segundo o artigo - Deficiência e Linguagem Cinematográfica[8], publicado em 2016 no Journal of Research in Special Education Needs (Jorsen), em que os pesquisadores orientados sob a perspectiva histórico-cultural fizeram um levantamento de obras cinemaográficas, produzidas entre 1994 e 2014, que tivessem como temática a deficiência com o objetivo de "analisar as características e principais concepções veiculadas nas obras, a fim de refletir

sobre como o indivíduo com deficiência é representado". A pesquisa aponta, que neste período de 20 anos foram produzidos 246 filmes sobre o tema com diferentes tipos de deficiência e um fator "curioso" (contém ironia), foi que a pesquisa deflagou que o gênero mais difundido, representando em 68.7% das produções, é o DRAMA.


A dissertação de mestrado - Deficiência em Tela - da cineasta DEF Sara O. Paoliello, criadora e curadora da Mostra de mesmo nome que acontece no Cine Humberto Mauro agora em setembro, também aponta uma pesquisa com mais de 400 filmes desde 1900 que tratam do tema deficiência, em que o gênero mais explorado dessas obras é?! … o DRAMA, representando 43,1%.


Um outro dado que a pesquisadora nos apresenta é a quantidade de Pessoas com Deficiência, que estão envolvidas na produção desses filmes, figurando 30,3%.


A cineasta também percebe em sua pesquisa, que o tema Deficiência tem um crescente nas produções a partir de 1990, tal fato coincide com o surgimento de políticas públicas internacionais para pessoa com deficiência, a partir da mobilização de movimentos sociais dessa população.


Eu mesma me tornei, digamos assim … cineasta, a partir de políticas afirmativas implementadas pela SPCine (empresa de cinema e audiovisual da Prefeitura de São Paulo), em 2018 produzi meu primeiro curta profanAÇÃO e mais recentemente LA HEMI, dirigido por Ila Giroto e codirigido por mim.


Venho das artes vivas - teatro, dança e performance - o audiovisual já fazia parte da minha prática artística pela videoarte desde 2004, mas se não fosse a política afirmativa, talvez nunca me aproximaria do cinema e teria a oportunidade de lidar com essa estrutura tão complexa e poderosa, que é a do cinema.

Até então, eu não conhecia outros DEFs do cinema, mas o fato de ter produzido o primeiro e de ter frequentado festivais, pude conhecer outros cineastas DEFs - Daniel Gonçalves (RJ) e Victor Di Marco (RS), que também traziam a temática da Deficiência, em primeira pessoa do singular.


Conheci Daniel, através de seu primeiro longa - Meu nome é Daniel e conheci Victor, através de seu curta O que pode um Corpo?

Ambos, colocam seus próprios corpos ampliados pelas lentes cinematográficas, a fim de desmitificar a experiência da deficiência.


O advento da Pandemia da Covid19, trouxe um BUM! de produções audiovisuais, por ser esta a única forma possível de criação do momento, fazendo com que mais artistas DEFs se debruçassem sobre a linguagem, como é o caso da atriz e produtora Jéssica Teixeira (CE).


Depois conheci Sara e seu curta de conclusão de curso de cinema - uma parte de mim, documentário protagonizado por ela e outros DEFs, que falam de suas percepções e vivências e principalmente como são percebidos em sociedade. Percebo nesses cineastas, incluindo-me também nessa, que as narrativas, se propõem a, de cara, romper com o gênero Drama, que nos é imposto, trazendo o discurso para si próprio, confrontando o status quo social, e também, por que não dizer da própria linguagem.


Além disso, no meu caso e no de Jéssica, propõe-se novas estéticas, que interpreto como geradoras de novas éticas, ao trazerem pra dentro da cena a Audiodescrição, encarando-a como poética e não só como ferramenta de acessibilidade. No caso de profanAÇÃO, o curta só tem opção acessível com AD e LIBRAS, justamente para propor uma coexistência e equidade na apreciação da obra e no caso de Curva Sinuosa de Jéssica - segundo a própria inspirada por profanAÇÃO - traz a Audiodescrição na própria dramaturgia, um gesto além para uma pesquisa estética.


Temos também Pedro França (RJ), com histórico de longa-metragem e direção de clips musicais. Conheci, recentemente por intermédio de Sara, dois curtas da cineasta Caroline Cavalcanti (MG), que é surda e que me pareceu ter uma proposta estética sonora, bastante relacionada à sua experiência. Também o cineasta surdo Ademar Alves Jr. (MG) comparando as bonecas namoradeiras à vivência da surdez na vida social.


E com certeza temos muitos outros DEFs cineastas, que não conheço, mas que desejo que o Mapeamento Acessa Mais nos faça conhecer.


É inegável, que estamos em um momento de construção de novos paradigmas em relação à Pessoa com Deficiência e a presença de cineastas DEFs no Mercado Audiovisual tem grande importância, pois a linguagem é bastante utilizada como dispositivo de discussão de temas atuais e relevantes na educação formal brasileira.


E é sobre a deseducação dos estereótipos, que nos interessa.

Considero de extrema importância, que o Brasil desponte ao realizar o projeto Mapeamento Acessa Mais, acredito se tratar de um gesto decolonialíssimo, uma vez que a partir dele, não poderão dizer que não existimos.


A ação de identificar quantitativamente os profissionais com deficiência de toda a cadeia da produção artística e da acessibilidade cultural, em cada canto do Brasil, é dar destaque para essa produção e materializar estas presenças para o Mercado Cultural.


Com os dados estatísticos, que o mapeamento fornecerá sobre a comunidade DEF da área cultural brasileira, será possível detectar as possíveis lacunas, que esta população enfrenta desde a formação até o pleno exercício no setor. A partir destes dados concretos, será viável a elaboração e execução de políticas públicas, que visem melhorar as condições e oportunidades destes profissionais brasileiros.


Sem contar que ao sabermos quem somos, onde estamos e o que fazemos, poderemos ampliar e criar oportunidades de colaboração, parcerias e fortalecimento dos profissionais da Arte e Cultura DEF, através desta rede, que o Mapeamento irá gerar.


O Mapeamento Acessa Mais é fruto de uma parceria entre O Ministério da Cultura através da Secretaria de Formação, Livro e Leitura (SEFLI/MinC) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA); sob a coordenação do artista e professor DEF da Escola de Dança (UFBA), Eduardo Oliveira [Edu O.] e da professora Marilza Oliveira, também docente da Escola de Dança (UFBA); conta com a participação de pesquisadores e artistas DEFs das cinco regiões do Brasil - Amanda Lyra (Sul); Ananda Guimarães (Norte); Estela Lapponi (Sudeste); Fábio Passos (Nordeste); Natalia Rocha (Nordeste) e Renata Rezende (Centro-Oeste), além de uma equipe composta por bolsistas da UFBA, consultores e profissionais da Acessibilidade e Tecnologia, em que quase todas são DEFs.

Desde o início destes anos os pesquisadores vêm se debruçando na criação do formulário e metodologias de criação de redes para a divulgação da ação.


O formulário online ficará disponível até o dia 21 de dezembro de 2024 e contará com as mais diversas formas de Acessibilidade Comunicacional, como também de Acessibilidade Atitudinal, em caso de dúvidas ou necessidade de apoio no momento de preencher o formulário online, uma equipe de monitores oferecerá suporte, através de um agendamento, que deverá ser feito pelo seguinte email:


O formulário poderá ser acessado através do

www.mapeaamentoacessamais.com.br (Formulário disponível somente a partir do dia 13 de setembro a partir das 16h)


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Como disse no início deste texto, o mês de Setembro de 2024 chega pra fazer história no setor cultural brasileiro. "É Primaveeeeeeeeraaaaaa. Te amo!"


Estela Lapponi


 

[1] Saudação aos Antepassados DEFs, ancestralidade DEF - https://youtu.be/GFpbxOaDyrE?si=etp4uwZWR9mwE7fe

[2] Gíria criada por bailarinos com deficiência no Roda Vica Cia. de Dança (1995) de Natal - RN, e conceituada (2016) pela pesquisadora, artista e ex-integrante do Roda Viva Carolina Teixeira. Refere-se à naturalização da palavra através da abreviação de deficiência, assim como a ideia de postura política de consciência da Ancestralidade DEF.

[3] termo, que designa o preconceito relativo à Pessoa com Deficiência, traduzido do espanhol pela antropóloga mulher cis LGBTQIA+ DEF Anahí Guedes de Mello .

[4] terminologia que se refere ao fato de atriz ou ator sem deficiência interpretar o papel de personagem sem deficiência, é considerada uma prática capacitista, pois não oferece oportunidade de uma atriz/ator com deficiência interpretar o papel, gerando outras consequências, que é o estereótipo da narrativa relativa e esse corpo.

[5] Cida Bento sobre Pacto da Branquitude https://youtu.be/zc51sZOlrQw?si=N9ixAko_6U2ijHRx

[6] Do conceito Bipedia Compulsória de Carlos Eduardo Oliveira - Edu O. artista DEF e professor Dr. da Escola de Dança da UFBA. Carta aos bípedes - https://youtu.be/tpLn3Vr2HHk?si=E-dWhZRI7YNHPOJI

[7] Coloco entre aspas para salientar uma ironia, pois essa siglarização da terminologia Pessoa com Deficiência, vem se apresentando comoo mais uma forma de desumanização do Sujeito DEF, mais uma ação do Capacitismo

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