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Leo McCarey (1898-1969)

por Vitor Miranda


"McCarey entende o ser humano talvez melhor do que qualquer outra pessoa em Hollywood." - Jean Renoir


Um dos maiores diretores da era clássica de Hollywood, responsável pela direção de mais de 100 títulos em quase cinco décadas, o trabalho de Leo McCarey está hoje entre um dos mais esquecidos e pouco discutidos entre os gigantes da era de ouro de Hollywood.


Seus filmes eram muitas vezes um enorme sucesso de público, e seus colegas admiravam seu trabalho (três Oscars e 36 indicações ao Oscar por seus filmes). Com educação religiosa e descendente de irlandeses, começou sua carreira guiando personalidades célebres da comédia como Laurel and Hardy (no Brasil conhecidos como O Gordo e o Magro), Mae West, os Irmãos Marx e Harold Lloyd. Em suas comédias, sempre teve interesse por comportamentos estranhos e ridículos, mas ao invés de condená-los ele os celebrava. A partir de 1935, com mais controle e prestígio, teve uma fase de ouro recebendo aclamação de público e de crítica, com obras como Vamos, América (1935), Cupido é Moleque Teimoso (1937), A Cruz dos Anos (1937), O Bom Pastor (1944), Os Sinos de Santa Maria (1945) e Tarde Demais para Esquecer (1957). A sequência de trabalhos o consolidou como mestre da comédia dramática.


A razão pela qual seu trabalho não é tão lembrado pode ser atribuída a várias questões, principalmente pelo pensamento altamente difundido do cinema de autor. Graças a revista francesa Cahier du Cinéma e sua enorme influência, diversos cineastas clássicos de Hollywood, que eram muitas vezes vistos como simples diretores de cinema comercial, tiveram seus trabalhos reconhecidos, resultando em uma preservação, não só de seus filmes, mas também de sua estética e sedimentando o que consideramos atualmente como um autor de cinema. São diretores como Alfred Hitchcock, John Ford, Howard Hawks, Chaplin, Frank Capra… todos contemporâneos de McCarey. Com uma forma de direção visual discreta e chamando pouca atenção para si, sem grandes movimentos de câmera, como Orson Welles, ou estilo visual marcante, como Douglas Sirk, de fato seu status como autor inspira dúvidas e discussões e vem sido dissecado por críticos e ensaístas de forma muito mais tardia e menos frequente. Mas será que apenas ter um estilo visual de fácil identificação é a única característica de ter visão de mundo dentro do cinema, de ser um autor?


Um ponto de partida interessante é a forma que ele utilizou sua vida pessoal como fonte de material para suas tramas. Assim como muitos de seus personagens, ele não sabia bem o que queria seguir como profissão e tentou diversas delas. Em Cupido é Moleque Teimoso, Cary Grant discute uma mina de carvão inútil que ele está tentando vender, enquanto em O Bom Pastor Bing Crosby é um compositor fracassado. Todas essas referências são fracassos passados de McCarey. O Bom Pastor obviamente se baseia na herança católica irlandesa de McCarey, mas Os Sinos de Santa Maria é ainda mais específico em sua inspiração familiar: McCarey reconheceu que o filme é amplamente baseado em sua tia, irmã Mary Benedict, que morreu de febre tifóide. A tia de McCarey não era professora (como a freira de Ingrid Bergman), mas sua irmã era, e supõe-se que ela também inspirou McCarey. O enredo de O Bom Pastor reflete a própria vida de McCarey – sua renda foi relatada como a mais alta nos EUA em 1945 e, como esses relatórios foram amplamente divulgados, ele teve que escolher qual, entre centenas de pedidos de doações e caridade, poderia apoiar. O enredo de romance a bordo de Duas Vidas (1939) chegou a McCarey enquanto estava no mar com sua esposa. E assim por diante.


Duas Vidas, filme de sua carreira em destaque no catálogo da plataforma CineHumbertoMauroMais e que me aprofundarei mais nesse texto, é um clássico instantâneo do cinema de romance. Sua história, um casal, Terry (Irene Dunne) e Michel (Charles Boyer), comprometido com outras pessoas e que se conhece e se apaixona em uma situação passageira, é um esqueleto de trama romântica que se repetirá diversas vezes na história do cinema, de forma mais direta em suas duas refilmagens: Tarde Demais para Esquecer (do próprio Leo McCarey) e Segredos do Coração (1994) e de outras formas em filmes, como Desencanto (1945), Tudo bem no ano que vem (1978), Antes do Amanhecer (1995) e entre outros.


Terry McKay: “Minha vida é um livro aberto. Só tem uma página!”


Esse encontro, que ocorre por acaso em um cruzeiro, se aprofunda na decisiva cena em que os dois, em uma pausa da viagem, vão visitar a avó de Michel. Então, o que era apenas atração física e uma dinâmica de humor, se torna em um verdadeiro encontro espiritual de almas e que muda a trajetória desses personagens a partir de então. A cena tem ares religiosos: as luzes entram de forma celestial e temos um momento silencioso partilhado em uma capela pelos protagonistas. E aí, talvez, tenhamos a marca de Leo McCarey mais evidente. Em seus filmes, frequentemente os personagens estão em um processo intenso de redenção pessoal e espiritual. Alguns exemplos claros estão no personagem de Charles Laughton em Vamos à América, em que a viagem aos EUA é uma verdadeira jornada de conhecimento pessoal. Assim como em A Cruz dos Anos, sua maior obra-prima dramática, em que o casal de idosos tem a sua redenção com o reencontro consigo mesmos, com suas memórias e com a geração mais jovem, através de desconhecidos em Nova York, após serem negados pela própria família. Essa redenção pessoal e moral fica clara em Duas Vidas, com os dois protagonistas procurando resolver suas próprias questões, Michel deixa de ser um playboy fútil e ganha a confiança para fazer o que sempre quis, que era pintar, e Terry tem a sua “punição”, a la anos 30, dominado pelo Código Hays (afinal, ela beija um homem fora do casamento) através do acidente de carro, que a faz deixar de ser uma cantora itinerante (mal visto pelos olhos da época) para virar uma professora de coral infantil.


Os momentos musicais dos filmes de McCarey são sempre bem especiais e dizem muito de sua abordagem humanista: através de gestos, olhares e o uso especifico da música diegética, a trama do filme frequentemente pausa para dar lugar a alguma performance encantadora. Em Duas Vidas se destaca a cena em que Terry canta para um grupo de crianças e a câmera une esses corpos, de etnias diversas, alternando entre o plano conjunto e o primeiro plano, transformando em um momento de comunhão, algo comum em diversos de seus filmes, como O Bom Pastor e Vamos à América.


cena de canto em O Bom Pastor (1944)


Leo McCarey também era um grande entusiasta da improvisação, frequentemente alterava seus roteiros no set, ao ponto de atores e atrizes frequentemente não memorizarem muitas falas, pois sabiam que muita coisa poderia mudar na hora da gravação. Tocava piano antes de rodar as cenas, pois dizia que o inspirava. A segunda parte de Duas Vidas foi pensada durante a execução da primeira e a produção teve dificuldade em balancear os tons, o cômico da primeira parte com o dramático da segunda. Mas o resultado é perceptível em momentos inspirados como a cena final, em que através de um jogo divertido de percepções, Michel descobre a verdade do motivo que Terry não compareceu ao encontro no Empire State. Parte do quanto o filme funciona e de seu enorme sucesso na época vem do carisma e química inconfundível dos seus atores: Charles Boyle, um grande Don Juan francês, que teve uma boa transição do cinema mudo pro falado graças a sua forte presença e sua voz marcante e doce, que incorpora uma persona que alguns anos depois ficou conhecida por Cary Grant: o protagonista charmoso, sofisticado, elegante, mas que não se acha e que frequentemente se deprecia, mesmo que todos o desejem. Irene Dunne, uma das maiores damas de Hollywood, atriz sutil, que diz muito com poucos movimentos no rosto e olhares gentis, arqueando a sobrancelha ou com um olhar de canto de olho, ela transmite felicidade e resignação com pouco, parece às vezes estar rindo de uma piada particular.


“Eu gosto de um toque de conto de fadas. Outros deveriam filmar a feiura do mundo. Não quero preocupar as pessoas.” Leo McCarey


Um ano após o lançamento de Duas Vidas, enorme sucesso de público e que recebeu seis indicações ao Oscar no disputado ano 1939, Leo McCarey se envolveu em um acidente de carro, assim como Terry. Tal pesar debilitou sua saúde e aumentou seu vício em remédios e álcool, fazendo em seguida seus enormes sucessos O Bom Pastor e Os Sinos de Santa Maria, seus filmes em que a religião está mais presente. Nos dois filmes, ele dizia que representava como os membros da igreja deveriam ser: apaixonados por pessoas, assim como ele. Leo McCarey não foi mais capaz de replicar seus sucessos anteriores no pós-guerra e só fez mais cinco filmes até 1962, incluindo dois que foram marcados pelo sentimento anticomunista da Guerra Fria, que atualmente podem ser vistos com diferentes olhares e releituras.


Peter Bogdanovich o entrevistou no hospital quando estava perto de falecer. Ele contou da sua desilusão com o cinema feito nos anos 60, dizendo que os cineastas não sabiam filmar com imaginação. Faleceu em 1969, ano decisivo para a história de Hollywood, às vésperas da dominância da geração da Nova Hollywood, com seu cinema cru e violento, em que certamente o cinema de conto de fadas de McCarey não teria espaço. Podemos hoje reviver o esquecido trabalho desse autor da mesma forma que na época? Certamente não, mas o impacto de seus filmes ainda permanece vivo para quem os conhece.

 

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