Alguns artistas possuem uma maneira tão particular de se expressar, desenvolvem estilos tão próprios, que parecem inaugurar fundações únicas dentro do campo artístico em que atuam. No vocabulário cinematográfico é comum dizer, por exemplo, sobre um “cinema de” Alfred Hitchcock, quando se pretende abordar a dimensão autoral na obra do mestre do suspense – uma obra que, evidentemente, constitui algo muito diferente daquilo que podemos encontrar no “cinema de” outros cineastas, como Chantal Akerman, Stan Brakhage ou Sidney Lumet.
Por um lado, isso pode soar como um movimento redutor, que condiciona uma forma de arte ao pertencimento de certo indivíduo, por outro, ressalta o extraordinário de cada olhar, de cada composição poética, de cada visão de mundo.
Se Lumet realmente conjura um cinema que lhe é próprio, talvez este esteja assentado no interesse do diretor pela potência das palavras – algo que, em sua filmografia, parece ser um elemento tão essencial quanto a força das imagens e dos sons. Desde seu primeiro trabalho no cinema, “12 Homens e Uma Sentença” (12 Angry Men, 1957), Lumet se utiliza de roteiros precisos e diálogos afiados para erguer em cena a complexa dinâmica do jogo de máscaras que regula as relações humanas, com todas as suas contradições e irregularidades, mas também com seus milagres mais quietos e encantadores. Essas relações são construídas e atravessadas tanto por questões sobre moralidade, justiça e política, quanto por questões relacionadas a afetos e desafetos íntimos.
“O Peso de Um Passado” (Running On Empty, 1988) é um exemplar dessa articulação; e uma peça curiosamente representativa do cinema de Sidney Lumet. O filme conta a história de uma família em fuga: Arthur (Judd Hirsch) e Annie Pope (Christine Lahti), são ativistas antibélicos, eles estão sendo procurados pelo F.B.I. depois de terem destruído um laboratório que fabricava explosivos para serem utilizados na Guerra do Vietnã. O casal tem dois filhos, Harry (Jonas Abry) e Danny (River Phoenix), que, mais do que um protagonista, é o coração pulsante dessa narrativa.
O roteiro, escrito por Naomi Foner, possui os traços de um bildungsroman (romance de formação) – como “Grandes Esperanças”, de Charles Dickens, ou “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J.D. Salinger, livro que não por acaso é diretamente referenciado no longa. Acontece que os típicos heróis destas histórias são pessoas que, deixando a infância para trás, encontram-se em busca de entender e afirmar quem são, em meio a um mundo repleto de incertezas. A trajetória do personagem de River Phoenix se encaixa perfeitamente nesse modelo; e é acentuada pela situação de sua família. Os Pope vivem como nômades, e mudam não apenas de endereço, mas também de nome, de aparência, de identidade. Quando Danny diz pela primeira vez o seu próprio nome em voz alta já se passou mais de uma hora de projeção. E quando ele o faz, seu nome não representa apenas a si mesmo, mas propaga uma confissão, soa como um segredo.
É interessante notar que a verdade sobre sua identidade é revelada às escuras, mais especificamente numa sequência noturna, num local isolado. Embora a mise en scène de Lumet seja sutil, ela está continuamente à serviço do que os personagens expressam, seja através do modo como agem, por onde andam, pelas palavras que falam ou pelas palavras que calam. A sutileza de sua direção, contudo, pode revelar uma riqueza de detalhes extraordinária.
Se observarmos de perto algumas de suas escolhas, como a escolha de filmar a revelação de Danny durante a noite, ou mesmo as escolhas de figurino, por exemplo, é possível verificar como mise en scène desta produção é precisa. Em um determinado momento da narrativa, Danny toca a campainha na casa de sua avó (Augusta Dabney). Danny sabe quem ela é, mas ela não o reconhece, não sabe sobre o parentesco que possuem. Ele não pode revelar quem é, então diz que está ali para entregar uma pizza.
Depois de afirmar que não havia pedido por nada, a mulher demonstra preocupação e pergunta se o garoto precisará pagar pela pizza, mas ele responde: “Não, vou ter que comê-la”. Ela sorri com a resposta. É curioso como esse diálogo é utilizado para evidenciar algo não dito e estabelece, ainda que de forma oblíqua, um cuidado da avó com o neto e também uma brincadeira feita por ele como retribuição. É um breve momento de intimidade, de conexão. Todavia, o elo entre os dois também está expresso nas cores do figurino. Eles partilham as mesmas tonalidades, estão numa tênue sintonia visual que ecoa uma relação mais profunda do que as palavras ditas podem dar a entender.
Isso, aliás, é algo recorrente neste longa. O grande dilema do filme toma forma quando Danny se apaixona por Lorna Phillips (Martha Plimpton) e o perigo da família ser descoberta ressurge. Danny e Lorna são tão unidos pelas conversas, que possibilitam trocas de experiências e expectativas sobre o mundo, quanto pelas cores dos figurinos utilizados por ambos – que sempre se alternam e se equilibram entre branco, azul, vermelho e cinza.
Ainda explorando a questão dos figurinos, há uma cena em que o pai de Lorna (Ed Crowley) pergunta para a mãe de Danny algo sobre o passado de seu filho. É um momento de ruptura na trama, quando ela descobre que sua família está em risco. O figurino do Sr. Phillips ressalta como ele está em consonância com o ambiente: ele faz parte daquele lugar – mas Annie não, e apesar de tentar se integrar ali, ela provavelmente terá de fugir novamente.
Running On Empty é um filme repleto de planos abertos, eficientes para ressaltar as relações entre diferentes personagens, e entre os personagens e os ambientes ao seu redor. Quando o filme vai chegando ao fim, planos fechados aparecem com mais frequência. É como se Lumet quisesse nos aproximar, devagar, mas cada vez mais, dos habitantes daquela história – uma condução que revela o aspecto matricial de sua abordagem neste projeto: trata-se de um filme mais voltado ao peso das decisões do que ao espetáculo das ações de uma vida em fuga; é uma história cuja complexidade surge a partir da intimidade, e a intimidade surge no desenrolar do tempo, no correr da trama, no rarear dos segredos.
Para além do figurino ou dos enquadramentos, a montagem também possui momentos muito sensíveis que ajudam a construir o sentido da narrativa, como no final da cena em que Annie reencontra seu pai (Steven Hill) depois de muitos anos. Numa conversa cheia de emoções e ressentimentos, eles terminam por se reconhecer numa triste situação em comum, então acontece uma das poucas fusões do filme, uma troca de planos que entrelaça e mistura, em pura substância visual, o rosto do pai e da filha, ao passar para uma nova cena.
Lumet já tinha mais de sessenta anos de idade quando rodou Running On Empty: é, portanto, de uma perspectiva madura que ele olha para a juventude. Talvez por isso o cineasta tenha entregue bem mais do que um conto sobre um jovem em busca de si. Essa história parece se constituir como um símbolo sensível dessa busca que não é apenas jovial, mas eterna, e que empreendemos a fim de possuir uma identidade consistente num mundo cuja essência é, para todos, a impermanência. Nesse sentido, esse filme parece exemplificar o que escreve Hermann Hesse: “A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro”.
Nessa tentativa de um caminho, os personagens deste longa têm de lidar com escolhas, decisões e, principalmente, com renúncias: nenhuma delas aparenta ser fácil ou superficial. Com tudo o que ocorre, a sensação, ao final, é agridoce – algo que se reflete no último personagem enquadrado, alguém que alterna suas reações entre sorrisos e lágrimas. Tudo se mistura num momento digno de uma epifania joyceana. E tudo parece sincero e humano, demasiado humano.
Este ensaio foi escrito por Rodrigo Azevedo como parte da mostra Lumet: Os Desafios Humanos.
Sobre o autor
Rodrigo Azevedo é Mestre em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e graduado em Cinema e Audiovisual pelo Instituto de Comunicação e Artes do Centro Universitário UNA. Trabalha como cineasta, pesquisador e produtor cultural.
Comments