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Giulietta Masina, pálpebras de neblina, pele de cinema

Por Carol Almeida

 

No centro do picadeiro iluminado apenas com um feixe de luz, Cabíria finalmente esbarra em Julieta. No fundo de sombras, percebemos que as estátuas das grandes tragédias e das exultantes comédias começam a se mover. Cabíria e Julieta se olham e se reconhecem. Muito rapidamente, seus olhos se enchem de lágrimas, elas discretamente sorriem uma para outra, aquele sorriso de canto de boca. O plano e contraplano da cena exibem seus rostos como a única fonte de luz da imagem, o close da mais pura e cintilante afecção. Finalmente, as duas se viram para a câmera e nos devolvem o olhar. Acordamos.


Imaginar a narrativa onírica do encontro entre essas duas personagens interpretadas por Giulietta Masina em dois dos mais memoráveis filmes assinados por seu marido, Federico Fellini, talvez nos ajude a entender não somente a força do que esses dois artistas criaram juntos, mas sobretudo a capacidade que ambos, com seus respectivos talentos, tinham de transformar a arte ilusionista em antídoto e veneno crítico do real. Sendo o real, em alguns momentos, a própria estrutura do relacionamento afetivo entre os dois.


Os filmes citados acima se chamam Noites de Cabíria (1957) e Julieta dos Espíritos (1965). Menos de dez anos separam as duas produções, mas, a despeito dessa aproximação temporal, esses filmes não poderiam ser tão radicalmente distintos no que diz respeito à proposição formal do diretor que, no filme de 1957, se despedia de sua herança neorrealista e, no filme de 1965, o seu primeiro feito em cores, abraçava com todas as forças a dimensão divina do delírio como princípio ativo da condução narrativa.


Apesar disso, eles simultaneamente não poderiam ser tão radicalmente correlatos no páthos em comum que suas protagonistas encarnam: falo da melancolia otimista dos clowns, conhecidos por produzirem horizontes pulsantes de vida em esquetes encenadas dentro de uma psicogeografia de ruínas (seja esse território aquele da Europa pós-guerra ou, neste caso, também o espaço das mulheres abandonadas e traídas pelos homens por quem se apaixonam).


No cinema, é comum que se produza uma extensa revisão crítica dos clowns que ajudaram, em tantos lugares do planeta, a fundar a própria arte cinematográfica. Somos familiares a vários desses nomes: dos estrangeiros Chaplin, Buster Keaton e Jerry Lewis, aos artistas brasileiros como Mazzaropi, Oscarito e Grande Otelo. Giulietta Masina, curiosamente, não costuma ser tão citada nesse particular hall da fama. E, no entanto, se fôssemos buscar uma imagem clown que guardasse em seus olhos os segredos de um mundo que carrega na pele as particularidades de ser uma presença feminina em uma sociedade organizada e regida pelo patriarcado, é para Giulietta Masina que a nossa mirada se vira.


A partir de uma análise da construção que a atriz faz de Cabíria e da Giulietta/Julieta fictícia, gostaria de abrir a imagem do que ela foi capaz de produzir, tanto como o rosto clown de Fellini quanto como as personagens que precedem e sucedem as várias faces dessa poética clownesca. É importante, dessa forma, recuar no tempo e pontuar que essa poética surge originalmente quando Masina interpreta um esboço da mesma personagem que a consagraria. Em Abismo de um sonho (1952), vemos Fellini e Giulietta apresentarem a primeira versão de Cabíria, que aparece em apenas uma cena para consolar o sujeito que acaba de perder sua esposa durante a lua de mel. Já estão ali a natureza de desajuste com as normas, a verve humorística e as expressões zombeteiras da personagem.


Dois anos depois de Abismo de um sonho, vem o papel que, marcadamente, coloca a atriz como referência para a performance clownesca no cinema. O filme em questão é aquele que lança Fellini num circuito de legitimação internacional: A estrada da vida (1954) divide opiniões no circuito europeu, mas ganha o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Giulietta se torna então um nome proeminente no cinema italiano.


É, portanto, com a personagem de Gelsomina que o corpo cômico e ingênuo produzido no seio da marginalização e da ruína social surge como a grande força motora dessa parceria artística. A moça, que é vendida pela própria mãe a um sujeito bruto e andarilho, intérprete de uma masculinidade com números circenses de força física (Anthony Quinn), passa boa parte do filme falando muito pouco. No entanto, suas expressões de dissonância, enfrentamento ou conformação com o entorno que a cerca nos contam várias histórias sobre a inadequação de alguns corpos no mundo, bem como as possibilidades de vida que surgem com esse desencaixe.


Gelsomina, rosto de alcachofra, Gelsomina, a obediente, Gelsomina, que nunca foi amada, mas sobretudo Gelsomina, aquela que, a despeito do mundo, toca trompete, dança e sonha. É na interpretação de tiques no rosto, olhos esbugalhados e ritmo de ação e reação nas cenas que Giulietta Masina constrói a petulância do sonhar inerente a todo clown. É sua versão da personagem que faz mover a história mais do que o próprio movimento errante do Zampanò de Anthony Quinn.


Uma certa teimosia, essa de seguir vivendo “apesar de”, paira no cerne dramático da história. Talvez espelho dos inúmeros problemas de bastidores do filme (que iam de mudança de equipe, temperaturas muito baixas nas externas e uma agenda apertada de filmagens para Anthony Quinn), bem como das inúmeras brigas que o produtor do filme, Dino De Laurentiis, teve com Fellini em razão da insistência deste em escalar a própria esposa como a protagonista desde a primeira versão do roteiro (o filme teria sido pensado exclusivamente para Giulietta, afirmava Fellini). A contraproposta de De Laurentiis não poderia ser menos hipócrita: o produtor queria que a sua esposa, a atriz Silvana Mangano, fosse a estrela do filme. A narrativa felliniana de discussões insolitamente espetaculares dentro e fora de cena.


O fato é que a primeira versão de Cabíria, e ainda mais a interpretação de Giulietta Masina como Gelsomina, abriu as portas para que a atriz vestisse novamente a pele da protagonista de Noites de Cabíria. Estamos agora diante de uma personagem mais complexa, cujas camadas emocionais se confundem com o espaço urbano que ela ocupa, uma Roma pós-guerra e pós-regime fascista, fraturada não apenas fisicamente, mas sobretudo eticamente. Por todos os cantos se empilham os vestígios de uma ressaca moral que atinge a todos sem distinção: a situação de uma vida sempre à margem, a dependência emocional da igreja, e a representação das figuras masculinas como inerentemente inescrupulosas.


O arco narrativo de Cabíria, uma prostituta que habita a periferia dessa cidade, indica estarmos diante de uma experiência feminina tautológica: a sequência inicial está fadada a se repetir exatamente da mesma forma, leia-se, os homens por quem ela se apaixona inevitavelmente irão trair sua confiança, alguns deles irão roubar seu dinheiro e jogá-la (não figurativamente) à morte. Mas o que interessa aqui não é o gesto que se repete neles, e sim aquele que se repete nela: Cabíria irá sobreviver, simplesmente porque, como todo clown, sua capacidade de acreditar na beleza das coisas resiste.


Uma cena em especial catalisa esse princípio, bem como anuncia um gradual afastamento de Fellini do neorrealismo rumo à suspensão do real, em que suas narrativas começam a flutuar na gravidade zero do surrealismo: Cabíria entra em um teatro de variedades, onde será, em algum momento, chamada ao palco pelo mestre de cerimônias do espetáculo. Sobre esse palco, o mágico a coloca em estado hipnótico, e, a partir desse momento, ela mergulha na dimensão do fantástico usando seus próprios desejos (de ser amada) como motor condutor dessa imersão. E enquanto Fellini usa um jogo de luz e sombra para dar uma ambiência etérea a esse sonho, Giulietta Masina fecha os olhos, como se estivesse nos desafiando a participar de sua fantasia sem precisar recorrer à indicialidade do visível como a referência da imaginação. O prêmio de Melhor Atriz em Cannes, no ano de estreia do filme, não poderia ser mais justo.


Em outro momento, com a famosa sequência final do filme, Giulietta entrega a condensação de linguagem que só os melhores versos de poesia são capazes de expressar. O rosto que chora de frustração é o mesmo que sorri em contemplação do mundo. A Cabíria de Giulietta é o vagalume antifascista ao qual Pasolini (que também coassina o roteiro desse filme) buscava nas cartas que escrevia durante as noites iluminadas apenas pelos canhões de luz da guerra. É a passagem entre dois mundos distintos na cinematografia de Fellini. É a explosão de raiva, mas também explosão de fé. É a personagem que, quando olha para a câmera na imagem-desfecho, se arrisca novamente a convidar esse Outro desconhecido (nós, espectadoras e espectadores) a entrar em sua casa, enquanto ela, e inevitavelmente nós, baixamos a guarda para as possibilidades da beleza ao redor. A Cabíria de Giulietta é, como diria Caetano na música que carrega o nome da atriz: “pálpebras de neblina, pele d’alma”, a inefável força de um chamado.


Giulietta viria a trabalhar com outros diretores nos anos seguintes, em algumas ocasiões recebendo papeis que tentavam de alguma forma se aproximar das alegorias incorporadas na figura do clown. Mas é somente quando volta a trabalhar com Fellini em mais um filme pensado especialmente para ela – agora com uma personagem que é batizada com seu nome – que a atriz recebe um papel que sabe explorar a melancolia de seu sorriso e seus olhos como uma chave de abertura ao mundo dos sonhos, o retorno da poética clown de dentro de uma perspectiva burguesa católica.


Em Julieta dos Espíritos, existe uma atenção especial de Fellini à culpa cristã, à falibilidade humana e aos desejos inconscientes dos personagens (a influência dos escritos de Jung é evidente em cena, bem como nas entrevistas que Fellini dava à época). O grande salto estético aqui acontece não apenas no uso habilidoso das cores e da cenografia para produzir sensações, mas sobretudo no fato de que a personagem de Julieta é construída também a partir dessa cenografia. Os objetos de cena, as paredes, seus vestidos e a iluminação que mascara ou revela seu rosto inteiro, a composição de seu corpo no quadro, tudo isso ajuda a produzir o perfil dessa mulher que vê sua confortável e luxuosa vida desmoronar psicologicamente quando começa a desconfiar que seu marido a trai.


Nesse sentido, o da lapidação psicológica de uma mulher a partir dos objetos que são caros à sua vida doméstica (roupas, decoração, jardim), esse é um dos filmes formalmente mais sofisticados de Fellini e um dos mais bem coreografados na precisão dos movimentos de câmera que parecem sempre dançar com os personagens, figurantes e cenário.


É também – porque esse é um elemento que se impõe na imagem – um roteiro pensado para que Fellini, ao mesmo tempo, tentasse se redimir frente à sua notória infidelidade no casamento e, de uma maneira astuta, indisfarçadamente elaborasse uma personagem com o nome de sua própria esposa para produzir um inconsciente nela visualmente tão arrebatador em sua artificialidade a ponto de essa visualidade se transformar na trama em si, mais até no que a suspeita/certeza de infidelidade que vive a protagonista.

Com esse roteiro-balé-autobiográfico em mãos, Giulietta Masina lapida sua personagem na sutileza das pequenas revelações que se condensam em suas expressões faciais. A própria forma como Fellini decide esconder esse rosto atrás de um véu de sombras nos primeiros minutos do filme, criando intencionalmente uma antecipação sobre seu desvelamento, já indica que é nele, no rosto dela, que estarão inscritas as dimensões físicas do afeto, a palpabilidade dos desejos e frustrações. Penso que existe na figura de Giulietta/Julieta uma equivalência de relação que é dada no filme a partir de um breve monólogo de uma das personagens que cruzam o cotidiano da protagonista. Numa visita ao ateliê de uma escultora, Julieta, com um tímido sorriso e uma economia de gestos, escuta:

“Michelangelo disse ao seu Moisés: por que não fala? Queria gritar a estas obras: por que não me ama? Minha arte é totalmente espiritual. Vamos devolver a dimensão física de Deus.”


A voz dessa escultora é também a voz de Fellini diante da grande artista com quem ele, não por acaso, decidiu se casar quando ambos eram jovens e criaram juntos, ele como roteirista, ela como atriz, a radionovela Cico e Pallina em 1942. Mas Giulietta, ao contrário do que podemos pressupor com essa comparação, não é o objeto inanimado que o artista faz mover com sua arte. Giulietta é, tantas e tantas vezes, a dimensão física do divino que faz mover o diretor de cinema – em seus delírios e, por que não, em seus próprios remorsos.


Com Julieta dos Espíritos, os dois caminham na construção de uma personagem que, diante da possibilidade de ter seu status quo perturbado por uma força externa – a amante –, revela suas reações emocionais na forma de projeções fantasiosas que, simultaneamente, a libertam e a inibem. O modo como Julieta percebe sua mãe e suas irmãs (os códigos da feminilidade exuberante que ela não herda), a lembrança de uma amiga que se suicidou por amor, a encenação na infância que a faz tornar mártir, o encontro com um oráculo, a visita ao detetive particular que irá investigar seu marido, e, sobretudo, a projeção que ela faz de sua vizinha Susy (Sandra Milo), todas essas relações serão sempre, em algum momento, suspensas pelo registro do sonho ou, em várias situações, pesadelos. A lembrar que estamos diante de uma obra desavergonhadamente artificial, chegando mesmo a ser camp em alguns momentos.


A força do filme – e às vezes também sua fraqueza, visto que a fórmula parece se esgotar no final –, contudo, está no fato de que são sempre muito borradas as fronteiras entre os índices do real e aquilo que a protagonista nos faz enxergar de dentro do seu inconsciente. Suzy, a vizinha, talvez seja o melhor exemplo disso. Não sabemos em que medida Suzy existe para contrapor à figura de Julieta como um devir que preenche esse lugar de síntese da liberação sexual da mulher que, ao contrário dela, não cumpriu com o contrato do matrimônio que assina o pacto do patriarcado, ou se Suzy é uma projeção dos desejos aos quais Julieta gostaria de se permitir. O grande trunfo do filme está justamente no fato de que Giulietta Masina, nesse papel, deixa margens para que duvidemos em qual regime do real ela habita.


É curioso notar que boa parte da crítica insiste até hoje em ler Julieta dos Espíritos como uma resposta feminina de Oito e Meio (1963), apontando que neste era o personagem de Marcello Mastroianni quem imaginava o mundo segundo suas próprias fantasias. Curioso porque é justamente com Marcello e Giulietta que Fellini decide fazer um dos seus últimos trabalhos, num filme que reúne os dois atores já mais velhos, como sujeitos não mais deslocados dos códigos e pactos sociais, mas certamente deslocados simbolicamente de um novo sistema de produção e circulação de espetáculos visuais, onde a presença do clown volta a fazer sentido como exposição do ridículo da imagem e na imagem.


Com Ginger e Fred (1986), Giulietta dá corpo a uma personagem anacrônica, uma mulher que é convidada a reencenar, num desses programas de TV que prometem minutos de fama, um número musical com aquele que teria sido seu parceiro em performances miméticas da famosa dupla Fred Astaire e Ginger Rogers. Amelia e Pippo, os nomes dos artistas que imitam Ginger e Fred, são agora a projeção já um tanto melancólica, mas nem por isso menos irônica e espirituosa, de um Fellini que, na crítica ao modelo artesanal da televisão (em oposição ao cinema que ele percebe como arte), produz personagens-imitações e vidas-simulacro.


Ao longo do filme, os dois passam, literalmente, por apagões, numa recorrência de ocasos em que Amelia/Ginger e Pippo/Fred se veem como fantasmas que sempre podem desaparecer quando as luzes do palco (ou agora o botão da TV) se desligam. Giulietta, novamente vestindo a máscara que lhe foi a vida inteira familiar, a da personagem ingênua de boa-fé cujas lágrimas não intimidam seus discretos sorrisos, agora se despede do cinema felliniano no papel uma mulher que interpreta uma versão nostálgica de si mesma. Talvez seja importante imaginar que, antes de subir no ônibus que a levará de volta ao espaço não-cinematográfico da experiência, ela novamente se torna Cabíria e Julieta e nos olha com aqueles olhos que reconhecem a beleza onde menos esperamos vê-la.


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