Hemisfério esquerdo em fissuras (Caroline Cavalcanti da Silva, Julia Teles Frade Paulinelli e Walter Gamaran Lara, 2024), na sua primeira sequência, nos mostra, em câmera subjetiva, uma mulher dormindo na cama. O silêncio que há no plano, signo comumente utilizado para representar um sono profundo, é desestabilizado por um zumbido digital, ruído tipicamente eletrônico. Sobreposto a isso, um curto e frenético conjunto de planos nos mostra a pílula que indica a frequência sonora de 130 dB. De antemão, o curta dá suas cartas ao espectador e o “prepara” para adentrar em sua dimensão onírica e farsesca, ainda que fortemente assentada no real. Luzes neon azuis e vermelhas colorem artificialmente a imagem e remetem a violência e repressão policial. Júlia Teles, protagonista e uma das diretoras do filme, toma a pílula. A tela de seu celular indica uma temporalidade múltipla que habita a cena (ou até mesmo toda a narrativa). Os dias 23 de junho de 2013 e a mesma data em 2023 se intercalam em um plano sobreposto ao outro até fixar-se na década anterior.
Seguido a essa breve sequência, Teles parece sentir não apenas os efeitos da medicação decibel, mas também de um tempo passado que ainda a assombra. Vemos uma série de imagens de arquivo gravadas nas jornadas de junho de 2013 que se sobrepõem à performance descompassada, claramente afetada pelo ruído excessivo, da atriz em um estúdio de música. Nos minutos seguintes, ruídos inapreensíveis, sons de alerta, sirenes e helicópteros, imagens de arquivo e o corpo de Júlia disputam protagonismo até que a estranha pílula faz efeito sobre a performance e sobre a cena. As sobreposições e o descompasso lentamente se esvaem e um corte seco retorna o espectador ao local do primeiro plano do filme. A protagonista vagarosamente acorda e se levanta. Na banda sonora, somos informados, curiosamente por rádio, de uma onda sonora que prejudica a audição de toda a população brasileira. As pílulas decibéis, portanto, são tomadas regularmente para amenizar os efeitos dessa catástrofe auditiva.
O curta se apropria de elementos comuns uma ficção científica - como por exemplo o ruído sintético, as luzes neon e um mal que afeta toda a população - para lidar ou reinventar o trauma passado - postura crítica que também é comum aos alegoristas. Assim como a população brasileira enfrenta as consequências, materiais e simbólicas, do que houve em 2013, a última tela do filme aponta que, para Teles, este ainda é um ano que não terminou. Em tela preta e letras brancas, somos informados que a diretora teve perda auditiva de todo o seu lado esquerdo com resquícios de zumbidos intermitentes, decorrentes da truculência de forças militares em junho de 2013, provavelmente na data em que a tela do celular se fixou. O filme, portanto, se dá no jogo dualístico entre passado e presente que contamina não apenas Júlia, que até a última tela do filme não é identificada, mas toda a estrutura social que a cerca.
De Branco Sai, Preto Fica (Adirley Queirós, 2014) a Divino Amor (Gabriel Mascaro, 2019), diversos traços alegóricos e distópicos vem contaminando nossa produção audiovisual. Elaborar uma experiência comunitária por meio de elementos da ficção científica é um recurso que foi amplamente utilizado pelo cinema brasileiro, sobretudo nos últimos anos. Entretanto, a distopia aqui criada ganha outros contornos para reelaborar a experiência coletiva do presente. Hemisfério esquerdo em fissuras parte de um trauma pessoal passado que ocorreu na esfera pública, mais especificamente na disputa pelo espaço comum. Portanto, partir de um trauma individual para reelaborar a experiência coletiva é o recurso narrativo aqui utilizado para criar uma distopia nacional.
No final das contas, o que está em jogo é a modulação de diferentes frequências. O vortex temporal, a trilha sonora e os sons diegéticos ruidosos, as pílulas em decibéis, a dança fora de ritmo e os dois tempos históricos, juntos, dizem a respeito de um desajuste frequencial de todos os elementos que constituem o filme e a ordem social desse trauma gestado nas jornadas de junho de 2013. Assim como o Brasil passou por sísmicas mudanças após tais acontecimentos históricos, Júlia se utiliza de um gesto quase metalinguístico do próprio fazer fílmico para criar uma partilha social do trauma, uma experiência individual que se manifesta coletivamente. Os ruídos e as sobreposições marcam o caráter de uma história fragmentária e incompleta, uma fissura aberta em 2013 que ainda não fechou-se.
Este texto crítico foi escrito por Renan Eduardo, crítico e pesquisador, para a obra "Hemisfério Esquerdo em Fissuras" (Caroline Cavalcanti, Julia Teles, Walter Gam, Brasil, 2024), exibido em 23 de fevereiro de 2024, na programação do Prêmio Humberto Mauro.
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