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Franquismo autofágico, caçadores cansados

A Caça (1966) é o terceiro longa-metragem de Carlos Saura. Nele acompanhamos três amigos, veteranos da Guerra Civil Espanhola, que reúnem-se para caçar coelhos em um planalto no interior do país. Entre diálogos e sequências cinegéticas, o sol fustiga a terra cansada que um dia foi palco de uma batalha entre republicanos e nacionalistas. A vitória destes, como se sabe, levou a Espanha a um regime ditatorial de quase 40 anos. A ditadura a que chamamos de franquismo, cujo nome deriva da figura do general Francisco Franco, é um dos temas – o principal tema – do filme de Saura.


Nossos protagonistas são ex-soldados nacionalistas. José, Luis e Paco (este interpretado por um ator-fetiche do cinema oficial do regime, Alfredo Mayo), senhores exaustos, são a própria imagem do franquismo da época, que começava a demonstrar sinais de esgotamento. Desiludidos e em crise, carregam a marca da decadência e da impotência; diante da velhice – tema recorrente nas trocas entre as personagens –, os três se angustiam e se convertem em caçadores melancólicos. Ao final do filme, esses homens frustrados destruirão a si mesmos. Caçando-se uns aos outros, refletem a imagem de um país autofágico.

Um parágrafo não seria suficiente para explicar as razões históricas para a crise do franquismo (além de faltar, a este que escreve, o repertório para isto). É importante sublinhar, no entanto, que os anos 1960 representaram o início de uma abertura política na Espanha. Na intenção de fortalecer a economia por meio de alianças comerciais, o franquismo se viu obrigado, por pressão externa, a ceder gradualmente à democracia. Este é um detalhe importante, pois apesar de historicamente censurado pelo regime franquista, Saura também foi uma figura estratégica na construção de uma imagem da Espanha no exterior. Eis o paradoxo que envolvia o cineasta nesses anos de ditadura: seus filmes abertamente críticos ao regime encontravam certo apoio do governo, preocupado com sua reputação internacional.[1]

A Caça não passou imune à censura (certos diálogos foram suprimidos, o título foi alterado...), mas tampouco foi retalhado. Sua projeção no exterior alçou Saura a um patamar até então inalcançado. Se o Festival de Cannes já havia reconhecido seu talento em 1960, quando da exibição de seu primeiro longa-metragem, Los Golfos, é com A Caça que o cineasta passa a ser visto, no cenário internacional, como um dos principais nomes do “novo cinema espanhol”.[2] Fazendo a ponte entre uma geração anterior – aquela de nomes como Juan Antonio Bardem e Luis García Berlanga – e uma posterior – aquela de Almodóvar, por exemplo –, Saura impõe-se, nesse momento, como um dos principais realizadores de seu país.


O terceiro longa de Saura nasce de sua produção anterior, Llanto por un bandido (1964). Durante as filmagens deste, o cineasta concebera o argumento do filme enquanto rodava uma sequência em um lugar desértico que carregava os rastros da Guerra Civil. Se isto nos auxilia a explicar o nascimento do tema de A Caça, há outro fator que, por sua vez, nos ajuda a esclarecer sua forma. Mutilado pela censura, Llanto por un bandido viu uma de suas principais cenas – estrelada por Luis Buñuel – ser talhada na montagem. O golpe teria sido acusado pelo cineasta, que então decidiu só filmar sob a condição de ter total controle sobre suas criações. É nesse momento que a forma alegórica desponta como possibilidade de expressão.


Não querendo estender-se demasiado na definição – complexa e dissensual – de alegoria, este texto não fará mais do que remeter leitores(as) interessados(as) em desdobrar a discussão ao imprescindível livro de Ismail Xavier, Alegorias do subdesenvolvimento (1993). Mantendo-nos pragmáticos, e apoiando-se nas palavras desse autor, compreenderemos a alegoria como uma forma dialética em que o conteúdo manifesto de uma obra disfarça um sentido oculto que cabe a nós, espectadores(as), desvendar analiticamente. É na distância entre aquilo que vemos na imagem e uma “outra” cena, isto é, entre uma moldura dramática visível e um sentido cifrado, que a alegoria se estrutura.


Se A Caça é alegórico, é porque aquele quadro singular – os três personagens postos em relação no cenário desértico – nunca deixa de referir, indiretamente (alegoricamente), a um diagnóstico geral da nação espanhola. Os rostos e corpos suados, os coelhos açoitados pelas carabinas, os objetos de cena, os espaços vastos e ardentes, os instrumentos bélicos, a encenação militar, entre outros, compõem uma cena permanentemente arranhada por esta “outra cena” que é o contexto nacional do franquismo. Note-se, por exemplo, como a vastidão do planalto é investida de procedimentos formais que acentuam, paradoxalmente, a claustrofobia: planos fechados, fotografia estourada (que restringe a profundidade de campo), ênfase nas elevações do relevo que circunscrevem o espaço da cena, etc. A forma, nesse caso, sinaliza para o cerco de um regime repressivo.


O que Saura teria compreendido, a esta altura, é o potencial subversivo da alegoria em uma conjuntura de repressão política. Diz Ismail Xavier: “Quando inserido numa perspectiva política, enquanto manifestação de conflito de poderes em circunstâncias históricas determinadas, o caráter cifrado da alegoria é astúcia diante da censura, solução de compromisso para dizer, com todo o cálculo, o proibido sob o manto do permissível”. Anos mais tarde, Saura resumiria o gesto alegórico em uma fórmula cristalina: “A necessidade de evitar mencionar os fatos sem fugir deles”.


Deixo a vocês que lêem este texto a liberdade de interpretar a alegoria de A Caça, restringindo minha contribuição a um breviário de detalhes que me parecem importantes: a mixomatose dos coelhos, a presença do Land Rover nas paisagens do velho mundo, a citação a Hemingway (a caça do homem pelo homem), a forma como o conceito de família é tensionado pelos diálogos, o animal sendo esfolado pelos camponeses... E, claro, o manequim incendiado, peça reminiscente de Ensaio de um crime, de Buñuel, a quem Saura deve muito de A Caça e de filmes seguintes.[3]


Em sua juventude, Saura interessou-se menos pela fase surrealista de Buñuel do que pelos filmes “realistas” como Terra sem pão. Após conhecê-lo no Festival de Cannes de 1960, tornou-se próximo do diretor de Viridiana e chegou a trabalhar em uma produtora capitaneada por Buñuel quando de seu retorno à Espanha após o exílio, no início da década. Se os primeiros filmes de Saura carregam uma inclinação quase neorrealista, sobretudo Los golfos, o que segue depois de A Caça representa, em geral, um avizinhamento da abordagem buñueliana da sociedade espanhola. Críticos aos valores cristãos, burgueses e patriarcais da Espanha do pós-guerra, muitos filmes de Saura – pensemos naqueles estrelados por Geraldine Chaplin – figuram motivos recorrentes na obra de Buñuel, como o fetichismo e a frustração sexual.


A Caça, como tantos filmes de Buñuel, é obra de um entomólogo. Lembremos da cena em que Luis – cujo nome, alguns supõem, faz referência ao diretor em questão[4] – captura um besouro e, com o uso de um alfinete, espeta-o no manequim antes de explodi-lo com tiros de carabina: por acaso seu gesto não ecoaria aquele do próprio filme – de dispor seus personagens em um determinado cenário e observá-los, estudá-los, tal como insetos? Substituindo, nesse caso, o olhar do microscópio pelas lentes de uma câmera? A conclusão talvez seja apressada, mas a presença dos insetos e o rigor com que Saura examina suas personagens nos permite ensaiar uma aproximação. Construído em torno de duas tendências – o plano geral e o plano próximo –, a câmera ou diminui as figuras humanas em relação à paisagem ou se achega da pele o suficiente para que se assemelhe ao olhar de uma lupa. Em um caso como no outro, as personagens são insetos.


Essa segunda tendência – a câmera excessivamente próxima dos corpos, registrando os poros, o suor e as rugas – encontra seu paroxismo na sequência da sesta. Deslizando lenta e eroticamente sobre o tronco nu de Alfredo Mayo, a câmera expõe um motivo estruturante de A Caça: a dialética entre o físico e o psicológico, o exterior e o interior, a aparência e a latência. Leitor de Freud, Saura concebe sua dramaturgia como um longo processo em que o conteúdo recalcado pelas personagens vem à tona depois de uma exposição a situações-limite (o planalto tórrido, golpeado pelo sol, convertendo-se em panela de pressão). Aos primeiríssimos planos de seus corpos e de seus rostos (o físico), por exemplo, o filme acrescenta o recurso sonoro da voz off que nos dá a ouvir o pensamento das personagens (o psicológico).


Dois, entre outros, são os signos de uma dimensão subterrânea, recalcada, que a violência da situação dramática trará à superfície: os túneis dos coelhos, evidentemente, e a caverna onde aloja-se um esqueleto de outros tempos (provavelmente da própria Guerra Civil). A ossada, figura de morte que recorda as personagens de sua própria mortalidade, bem poderia ser um corpo escondido pelo franquismo.


Quando a violência irrompe, as personagens estão literalmente desnudas: conforme o calor avança, as peças de roupas vão caindo e os homens vão desvelando algo de si. Despem-se para a câmera e para os outros; trazem à tona aquilo que estava anteriormente oculto. Essa violência disparadora, que faz aflorar uma matéria recalcada, a encontramos em outro cineasta da época – realizador igualmente propenso a construir personagens masculinas em crise com a própria virilidade. Anos depois do lançamento de A Caça, Sam Peckinpah diria que este era um dos filmes mais importantes de sua vida.

 

[1] A Prima Angélica (1974), por exemplo, foi um filme promovido pelo governo espanhol no exterior.

[2] A Caça conquista o Urso de Prata no Festival de Berlim. Entre os membros do júri estava Pier Paolo Pasolini, que saiu em defesa do filme de Saura para o prêmio principal (concedido, finalmente, ao filme de Polanski, Cul-de-sac).

[3] O filme seguinte, Peppermint Frappé (1967), será dedicado a Buñuel.

[4] Há quem defenda que a personagem de Luis foi inspirada no próprio Buñuel: amante da caça, colecionador de armas, melancólico incorrigível, entre outros.

 

Este ensaio foi escrito por Luiz Fernando Coutinho, cineasta e pesquisador, em complementação à sessão comentada de "A Caça" (La Caza, Carlos Saura, Espanha, 1966), exibida na faixa de programação História Permanente do Cinema, no dia 01 de Julho de 2023, como parte da mostra "As Alegorias de Carlos Saura".

 

Sobre o autor

Luiz Fernando Coutinho é bacharel e mestre em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Atualmente, é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É editor da Revista Madonna, tradutor do blog de cinema Vestido sem Costura e redator da LIMITE - Revista de ensaios e crítica de arte. Já ofereceu cursos livres sobre melodrama no cinema clássico hollywoodiano, John Carpenter e Jacques Tourneur. Em 2021, organizou, junto à equipe do Vestido sem Costura, a Retrospectiva “25+1 Anos da Lettre du Cinéma”.



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