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fragmentos de um estudo sobre filhas do pó

por Lorenna Rocha


PARTE I


o caledoscópio apresentado à Trula, em sua viagem no rio, sugere que:

dependendo do ponto de vista, você terá uma noção diferente

um impulso diferente

uma leitura distinta

sobre a ida daquela família ao Norte


porque deixar seu lugar de origem

se lá

do outro lado

não haverá uma terra que te ofertará apenas mel?


eu vou ter mais que despedida esperando por eles

anuncia Nana Peazant

que tem sua voz

conectada

à voz-presença da criança não-nascida

aquela em que a história começou

antes mesmo dela ter nascido


a interligação entre elas

de cunho espiritual

impacta

os desenhos formais do filme voz over em conexão e embate

imagens que confluem a presença da mais nova

(aquela que está por vir)

com a da mais velha


as que chegam trazem consigo matérias da modernidade

não comer o biscoito oferecido por Yellow Mary

é negar

a ideia de progresso

a ideia de que daquele outro lado há oportunidades para todos

há?


uma fotografia

ou

um punhado de plantas

guarda memórias? a materialidade da fotografia

faz com que elas durem mais?


a técnica aparece como ferramenta para manter imagens da família

ao mesmo tempo que

parte dessa mesma família

resiste em acreditar

no modo como as memórias

circundam

envolvem

movimentam

as crenças e o cotidiano daquelas que vivem na ilha


a contradição é um lugar possível

para mostrar as nuances do conflito entre

“tradição”

e

“modernidade”


ou


de como a promessa de futuro

corrompe as tecnologias presentes nos seios de comunidades

como a que vive Nana Peazant


um clarão branco aparece na imagem

um flash?

uma fagulha de memória?

seria o filme o próprio objeto de preservação

de manutenção da memória?

de sua criação,

reinvenção,

também?


e

tudo

é tão material:

objeto-bilhete objeto-pote de biscoitos objeto-pote de mel objeto-árvore dos ancestrais objeto-túmulo objeto-pulseira

objeto-carta


há um pouco das personagens

em todos lugares

a presentificação se dá pelos objetos

a recusa a eles também fala sobre o conflito entre elas

sobre a negação

sobre a dúvida


enquanto Viola diz que

“o passado é prólogo”

a criança não-nascida

aponta para o lado contrário

onde os tempos não se distiguem

e é aquilo que antecipa o agora

que a mantém como presença desejada

porvir

contraditoriamente gestada pela violência

repetida

marca

da violência colonial


a barriga de Eula também marca o tempo

a espera

a dúvida de seu marido por saber que

sua filha

não é

“fruto de seu amor”

mas não há posse (?)


há uma controversa espera

há revolta da parte dele também

e abrigar em si esse turbilhão de emoções

diz muito dessa consciência fragmentada

dos desejos igualmente fragmentados


partir

ficar

aceitar

negar

assumir

negligenciar


polaridades de visões de mundo

se controem

assim como os sentimentos e conflitos

que perpassam as personagens


ancestralidade

x

forças da modernidade

do capitalismo

das grandes cidades industriais


mas lembrem: não há mel nessa terra


os diferentes pontos de vista

as diferentes vozes

e percepções

sobre aquele almoço

de 18 de agosto de 1902

são reflexos da cultura griot?

seus modos de transmissão

o movimento da narrativa

reestrutura a matéria fílmica?

se contrapõem até ao jeitinho americano

de contar/forjar histórias


e as temporalidades são muitas

num dia só

está o ritmo do outro lado que se deseja atravessar

a vida daquela que está no ventre

o desfecho de uma despedida (e de permanências) (e de fugas) a criança não-nascida aparecer nas lentes do fotógrafo

é um modo de brincar

e de questionar

com

o aparato técnico


é o momento em que a matéria das memórias

se fundem

mas também se confrontam


seria possível ver aquilo que não está na materialidade?

porque através da lente da câmera fotográfica?

uma traição nos sentidos para motivar

a crença na memória não-material?


o catolicismo afasta tia e sobrinha

irmã e irmã

mas há algo que puxa as relações


se

“manter a família é um desafio

para todo povo negro livre”

deixar partir também

é

acreditar

na continuidade

sem

contato

ou

presença

física



PARTE II


uma brincadeira

uma dança

pode conectar o corpo a uma memória

um movimento torna-se

o ponto de encontro

com outro tempo


há muitas formas de

ver

ler

e

contar histórias


a descrença e a destruição

fazem mover

tudo

toca

em tudo

mas não

é necessariamente

obliteração


e é só disso que a tia lembra”


pó/poeira

fragmentação

aquilo que está no passado

o que corre

o que circunda


fazer ver

o que não é matéria

de modo

a trair os sentidos

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