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Fellini, il maestro

Por Sérgio Alpendre

 

Cineasta do onirismo e da megalomania, cineasta-adjetivo, habilidoso cronista da sociedade humana em todos os tempos, artista de circo e jornalista, provinciano e cosmopolita, satirista e historiador, o mais autorreferencial dos diretores. Tudo isso, e mais um pouco, é verdade a respeito de Federico Fellini, provavelmente o cineasta italiano mais famoso que já existiu. Há quem questione sua posição como um gênio da sétima arte. Um gênio que muitos reconhecem e alguns acompanham à distância. Só não se pode questionar sua importância para a história do cinema.


Colaborou em roteiros de filmes de Mario Bonnard, cineasta que começou no cinema mudo, e de Roberto Rossellini, de quem era amigo desde a época da Itália fascista. É um dos roteiristas de Roma Cidade Aberta (Roma Città Aperta, 1945) e Paisà (1946), dois marcos do chamado neorrealismo. Foi corroteirista e ator de “O Milagre”, o segundo episódio de O Amor (L'Amore, 1948), de Roberto Rossellini, no qual Fellini interpreta um milagroso silencioso que aparece para a personagem de Anna Magnani. Ainda em 1948, começaram as colaborações em roteiros para filmes de Pietro Germi, diretor muito identificado com o neorrealismo, e Alberto Lattuada, com quem dividiria a direção do primeiro longa, Mulheres e Luzes (Luci del Varietà, 1950), lançado no mesmo ano de sua maior colaboração com Roberto Rossellini, o roteiro de Francisco Arauto de Deus (Francesco, Giullare di Dio, 1950).


A década de 1950 será de consolidação desse novo autor italiano, com sua carreira crescendo em paralelo à revista que abrigou os arautos da política dos autores, a francesa Cahiers du Cinéma, e à revista que acompanhou o crescimento do cinema italiano na época, Cinema Nuovo de Guido Aristarco. E evoluiu com coerência, ajudado pela maneira de filmar e de se cercar de pessoas de confiança. O set de filmagem que Fellini costumava estabelecer, segundo o historiador Peter Bondanella, tinha regularmente “amigos de longa data e profissionais consumados, com atmosfera de aventura, descoberta, inovação e improvisação criativa”. Isto ajuda a explicar por que não se pode deixar de falar em Fellini quando se pensa em autoria no cinema.


Podemos fazer várias divisões possíveis na carreira de Fellini. Cada historiador propõe a sua. Proponho também a minha, segundo meu entendimento de seu percurso. Seu cinema atravessou três fases bem identificáveis pelos começos que introduzem novos temas ou estilos, com uma fase de transição entre as duas primeiras. Cada uma delas tem sinais ou grandes resquícios das outras. Porque o cinema de Fellini evoluiu por acumulação de temas e formas. Seus filmes foram inflando de motivos, somando experimentos de diferentes espécies, misturando elementos das fases de um modo a justificar o adjetivo: felliniano. Um elemento, contudo, perpassa toda sua carreira até Ensaio de Orquestra (1978): a música de Nino Rota. Não é possível imaginar Fellini sem a música circense e melancólica de Rota. É ela que dá o tom das loucuras, das emoções ou das críticas que o diretor coloca em seus filmes. Giuseppe Rotunno também tem imensa importância, pois é dele a direção de fotografia dos filmes mais fellinianos, de Satyricon a E La Nave Va, passando por Roma, Amarcord e Casanova. Rotunno ajuda a imprimir as sombras e as cores do período mais alucinante do cineasta, aliando a mobilidade da câmera que Fellini sempre procurou com um aspecto pictórico que esteja a serviço dos filmes, não de seu próprio portfólio de fotógrafo. Rotunno, como já havia demonstrado nos filmes que fez com Luchino Visconti, é o maior pintor do cinema.


O cinema de Fellini é marcado pela caricatura; pelas quebras constantes da quarta parede, escancaradas pelo artifício da reportagem de TV em Ensaio de Orquestra e do cinejornal em E La Nave Va, mas existente em quase todos os seus filmes; pela música circense e emotiva de Nino Rota; por uma espécie de saudosismo crítico, muitas vezes com farpas para o passado fascista da Itália e para a sociedade italiana como um todo; por um estilo de câmera que se movimenta com frequência, deixando que cada quadro, por mais bem enquadrado, seja sempre temporário. Como se trata de um cineasta que justifica e enriquece a política dos autores pela coerência de seu percurso, encontramos sempre sinais ou motivos que reaparecem, estruturados de forma mais complexa ou, eventualmente, mais satírica, em futuros filmes. Assim, quando Gelsomina se perde entre os transeuntes em A Estrada da Vida, temos uma antecipação em escala menor da brilhante cena de romaria de Noites de Cabíria, que tem muito de Buñuel em sua representação do fanatismo religioso. Do mesmo modo, a festa de A Trapaça será potencialmente exacerbada na festa de A Doce Vida, cinco anos depois, e nas festas de Satyricon, Casanova e Cidade das Mulheres.


De todos os aspectos da obra de Fellini, contudo, um me impressiona bastante: a singular investigação da falência do “macho” italiano (e, por consequência, latino). É possível encontrar essa característica, no cerne ou no subterrâneo, em praticamente todos os filmes que Fellini realizou desde seu primeiro longa solo, O Abismo de um Sonho (Lo Sceicco Bianco, 1952). Ela está mais pronunciada em Os Boas Vidas, A Doce Vida e Oito e Meio, atingindo níveis determinantes em Casanova e Cidade das Mulheres (La Città delle Donne, 1980). Indiretamente, também em Toby Dammit, que mostra um ator de cinema destruído pelas drogas e decapitado numa espécie de acidente-suicídio com sua Ferrari.


Casanova e Cidade das Mulheres já foram considerados filmes misóginos, por mostrarem os estereótipos femininos ao redor dos protagonistas. Não perceberam o que os filmes têm de melhor: a destruição da ideia de masculinidade no mundo patriarcal, sobretudo nos países latinos. Em Casanova, o protagonista interpretado por Donald Sutherland atravessa uma espécie de Via-Crúcis sexual, com transas performáticas, mecanizadas, até que se sente atraído por uma boneca mecânica. No seu ocaso, tem um sonho com essa boneca, em que ele também é transformado num boneco, dançando com o par como numa caixinha de música. É o mais triste dos finais de Fellini, e o mais belo. Cidade das Mulheres joga o protagonista, herdeiro do Guido Anselmi de Oito e Meio, no ridículo. É como se a rebelião das mulheres do harém com que sonhou Guido acontecesse de verdade 17 anos depois, em mais uma conexão forte entre filmes de fases distintas.


As fases que destacarei a seguir podem ser subdivididas e até modificadas dependendo da leitura que for feita. Optei pela que identifica a maneira como novas forças foram introduzidas em seu cinema, modificando o aspecto geral das obras sem renunciar a qualquer sinal do estilo presente desde seu primeiro longa, quer se considere Mulheres e Luzes ou O Abismo de um Sonho.


A fase realista (ou neorrealista)

Compreende os filmes realizados nos anos 1950. Nenhum deles se encaixa confortavelmente nos preceitos do neorrealismo idealizados por Cesare Zavattini, como de fato poucos filmes se encaixam, mas alguns elementos podem ser encontrados em Os Boas Vidas (I Vitelloni, 1953) e, principalmente, A Estrada (La Strada, 1954), já de uma forma diluída na poética sentimental de Fellini. Os Boas Vidas é o filme mais importante dessa fase, porque mostrou ao mundo um novo autor. A obra-prima da fase realista, contudo, é Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957), que André Bazin chamou de “viagem ao extremo do neorrealismo”. É o último filme de Fellini nos anos 1950 e já ensaia uma transição para a fase seguinte. Extremo do neorrealismo pois já se vislumbra um descolamento total das ideias de Zavattini que Fellini nunca chegou a seguir de perto como diretor. No roteiro, a colaboração de um futuro autor, dois anos mais novo que Fellini, mas que parecia repetir o mesmo percurso, da escrita para a direção, com uma década de atraso: Pier Paolo Pasolini.


A modernidade de Os Boas Vidas é flagrante na maneira inventiva com que Moraldo se despede da pequena cidade num trem para Roma, como se o trem passasse por dentro dos cômodos das casas de seus amigos. Da janela do trem, ele vê sua vida na província se afastando, os amigos acenando na sequência que Scorsese entendeu como fundadora de seu próprio cinema. É possível falar, sobre esse momento único, o mesmo que Jacques Rivette escreveu a respeito de Viagem a Itália (Viaggio in Itália, 1954), de Roberto Rossellini: “o cinema automaticamente envelhece dez anos”, dando conta de que nascia ali, diante de seus olhos, o cinema moderno. Os franceses elegem muitos filmes como o nascimento do cinema moderno, e estou indo pelo mesmo caminho aqui. Frases de efeito à parte, é fato que algo especial acontecia no cinema italiano naqueles anos, e em especial nesse desfecho de Os Boas Vidas. Se considerarmos que, também em 1954, Visconti lançaria seu Sedução da Carne (Senso), temos um poderoso sinal de que os preceitos do neorrealismo estavam sendo esgarçados pelos principais autores do cinema italiano, que visavam chegar a outro lugar, em que a busca por um certo realismo era só um elemento dos filmes. Não por acaso, tanto Rossellini quanto Visconti foram acusados de traidores do neorrealismo, pecha de que Fellini se livrou parcialmente por ter começado um pouco depois, ainda que mais tarde a crítica italiana deixe de poupá-lo.


Depois da invenção no final de Os Boas Vidas, Fellini resolve se exercitar no modo clássico, com dois longas que unem comédia e melodrama, dois relatos melancólicos de sobreviventes na Itália dos anos 1950: A Estrada e A Trapaça (Il Bidone, 1955). Seriam as últimas vezes, até Ginger e Fred (1985), que Fellini desenvolveria uma trama estruturada de modo tradicional, com um desenvolvimento esperado de ações e consequências. A partir de Noites de Cabíria, o diretor começaria a ensaiar narrativas em blocos cada vez mais livres e independentes. É como se precisasse dominar a convenção (e que domínio podemos notar nesses filmes) para melhor se aventurar no cinema moderno. Nesse sentido, Noites de Cabíria torna-se, a seu modo, também um longa de transição. Com este filme estaria encerrada a fase realista, a mais amada por aqueles que não têm o diretor entre seus preferidos. Como escreveu Angel Quintana, Fellini “começa a se libertar da tirania da trama, permitindo que cada cena tenha maior autonomia e preparando a estrutura episódica de A Doce Vida”.


(A fase de transição)

Compreende, de fato, o longa A Doce Vida (1960) e o episódio de Boccaccio 70, “As Tentações do Sr. Antônio” (1962). São filmes que completam um movimento de vários cineastas na segunda metade dos anos 1950, de abandonar o neorrealismo ou radicalizar na adoção de seus preceitos. “As Tentações do Sr. Antônio”, como boa parte dos episódios de filmes coletivos da época, é mais um parêntesis na obra do cineasta do que um apontamento, embora seja o primeiro trabalho em cores e uma espécie de crítica à indecência de A Doce Vida (como indica o retorno de Anita Ekberg) na figura do Sr. Antônio, um típico pai de família hipócrita, o que termina por soar uma caricatura conservadora bem ao gosto do Fellini mais cáustico. Também antecipa alguns motivos visuais de 8 e Meio (os andaimes, os grandes espaços internos em pedra branca, o clima delirante dentro do meio religioso). Por mais que já tenham sinais em filmes anteriores, é definitivamente neste episódio de Boccaccio 70 que nasce o grotesco felliniano que baterá cartão em praticamente todos os filmes seguintes até Cidade das Mulheres.


Pode-se argumentar que começa com A Doce Vida a verdadeira poética felliniana, uma vez que a maior mudança está entre este e o longa anterior. Não seria errado reconhecer, então, que só há duas fases no cinema de Fellini, antes e depois de A Doce Vida. Neste longa sem igual, Marcello Mastroianni é o jornalista que não ouve o que dizem as mulheres no começo, nem o que diz a adolescente no fim. Em quase três horas de filme, ele permanece sem entender o que se passa ao seu redor. Um retrato poderoso da alienação do homem de classe média, um dos filmes mais críticos de que se tem notícia.


Por mais que seja possível detectar alguma progressão na jornada de Marcello até sua completa alienação, a modernidade de A Doce Vida reside principalmente em sua estrutura formada por blocos narrativos independentes, adornados por festas decadentes ou mesmo babilônicas, que poderiam ser ordenados de modo diferente, sem prejuízo da compreensão do espectador. Os blocos independentes se sucedem após a introdução do Cristo, cada um relacionado a um personagem interpretado por ator ou atriz de grande força, ou algum motivo em que Fellini possa exercer sua crítica. Na ordem: a socialite Anouk Aimée; a atriz Anita Ekberg; Alain Cuny (que interpreta Steiner, um dos personagens mais trágicos e belos que vi no cinema); o bloco do milagre televisionado; Alain Cuny novamente; Paola (Valeria Ciangottini), a adolescente do restaurante praiano; o pai de Marcello numa noite em Roma, episódio em que, num cabaré chique, vemos Magali Noel, atriz felliniana até a medula, que voltaria esplendorosa em Amarcord; a cantora Nico, vivendo ela mesma, que leva Marcello à festa no castelo onde ele reencontra Anouk Aimée; suicídio de Alain Cuny; entrega total de Marcello à perdição; epílogo com a adolescente Paola no final. Alguns desses blocos são entremeados pelos encontros de Marcello com Emma (Yvonne Furneaux), sua namorada, reforçando a impressão de que não há alternativa para sua perdição que não o romance tradicional burguês.


A fase do realismo onírico

Inicia com Oito e Meio (1963), passa por Julieta dos Espíritos (Giulietta degli Spiriti, 1965), sua versão feminina, e termina, sem terminar de fato, com Toby Dammit, episódio para o longa coletivo Histórias Extraordinárias (1968). Se no primeiro a crise era do homem, transformado em um ser lastimável, sem capacidade criativa alguma, um homem reduzido à sua porção de menino, o segundo investiga a crise de uma mulher casada diante da sociedade patriarcal em que vive. Como essas investigações da natureza humana são feitas com alta carga onírica, esses filmes renderam a Fellini a pecha de alienado. Nada mais distante do que realmente são, peças de crítica social, em que o realismo não é abandonado. O que é inaugurado nesse período estará para sempre no cinema de Fellini, subindo à superfície em muitos casos.


Em Oito e Meio, Guido Anselmi, diretor de cinema interpretado por Mastroianni, tem 43 anos, como Fellini. Mentalmente, ele imagina a chegada de sua atriz ideal, Claudia Cardinale, literalmente descida do céu por um movimento mágico da câmera. Mas a realidade o desperta, com uma das atendentes oferecendo um pouco da água da estância. Vemos um cineasta em crise criativa, entre médicos, enfermeiros, a escolha de elenco e outros eventos que mais o distraem do que o colocam num rumo adequado. Por vezes ele parece mais preocupado com as mulheres de sua vida, e o filme que deve realizar se torna um fardo. O desfile de atrizes surpreende também pela ausência de Masina: Cardinale, Anouk Aimée, Sandra Milo, Barbara Steele, Rossella Falk, Madeleine Lebeau. Mas essas mulheres se amotinam, a Itália do pós-guerra se modernizou também nas questões feministas. A masculinidade tóxica de Guido não tem mais vez, ainda que ele consiga controlar o motim. Um erro, nesse sentido, a absolvição figurada no final circense, pois não condiz com a condenação do macho italiano que Fellini vinha mostrando desde Abismo de um Sonho e continuará mostrando até, pelo menos, Cidade das Mulheres.


É um filme semiautobiográfico. Nem tudo que vemos de Guido diz respeito a Fellini, assim como pode ser falsa, ou imprecisa, a ideia de que a mulher traída seja Giulietta Masina. O fato de que Fellini tenha realizado, de presente para Masina, o seu longa seguinte, Julieta dos Espíritos, diz mais respeito ao que se falou sobre a suposta associação do que a um verdadeiro sentimento de culpa, embora o filme pareça também uma confissão e um pedido de desculpa. Do pesadelo ao circo: eis a jornada do cineasta em crise. A figura do crítico insere uma interessante autocrítica e procura blindar o diretor, a meu ver com sucesso, das críticas que ele já esperava receber por essa jornada para dentro de si.


Se Julieta dos Espíritos parece ainda mais delirante do que Oito e Meio é porque a cor era o ingrediente que faltava para a mente inventiva de Fellini, um exímio colorista, seja com Gianni di Venanzo, Giuseppe Rotunno (especialmente), Tonino Delli Colli ou outros diretores de fotografia. Muitos falam do vermelho de Godard, Bergman ou Almodóvar, mas os vermelhos deste filme de Giulietta Masina são tão marcantes quanto os ocres (e os vermelhos) de Satyricon ou os azuis de Casanova. Isto dentro de uma valorização, como bem lembrou Angel Quintana, também do verde e do branco, formando as cores da bandeira italiana. No crescendo delirante de seus filmes desde A Doce Vida, Julieta dos Espíritos parece ser o ápice depois do qual tudo será possível em seu cinema. A partir de Satyricon (1969), ele deixa de representar frontalmente os estados mentais para canalizar suas imagens oníricas a um entendimento bem peculiar da história (de Roma, do cinema, de Rimini, da Cinecittà). Julieta dos Espíritos abre um portal que o cineasta atravessará sem medir os riscos, para nosso deleite. Extraordinário também onde fracassa.


A fase do realismo onírico e histórico

Satyricon (1969) inicia a fase histórica sem que o caráter onírico ou a preocupação com o realismo (nos figurinos, na iconografia de época) desapareçam. Tais características agora estariam submetidas a sítios históricos como Roma ou Rimini, personagens históricos como Giacomo di Casanova, Fred Astaire e Ginger Rogers e eventos históricos como o estopim da Primeira Guerra Mundial, a evolução da linguagem cinematográfica ou a evolução da Cinecittà (e por consequência, do cinema italiano). Esta é a fase mais longa, e pode ser subdividida em três etapas: a do esplendor (1969-1976), a que procura uma readaptação aos novos tempos (ventos?) cinematográficos (1978-1983), a da suavização (1985-1990).


Com Julieta dos Espíritos, nascia o Fellini mais controverso, das figuras grotescas, da vulgaridade e da narrativa em blocos com direção espiralada em sintonia com o Tarkovski de Andrej Rublev (1967) e que tanto estrago irá causar por mãos menos talentosas, de Paolo Sorrentino ao último de Aleksei German. Com Satyricon, temos a quintessência desse Fellini, seu filme mais autoral, aquele que mais possibilita posições extremas (ao lado de Casanova). O mais incompreendido e malvisto. A bela feiura da fotografia de Giuseppe Rotunno confunde. Só não entende a contradição quem não embarcou no filme. A música experimental também confunde. Satyricon é mais do que uma adaptação de Petrônio, é um ensaio sobre adaptações de textos da antiguidade, ou, ainda, um ensaio sobre como se entendia a antiguidade no final dos anos 1960, com um homoerotismo só possível nessa década de novos patamares na representação do desejo. O banquete de carne humana no final é também um sinal de que este é o mais pasoliniano dos filmes de Fellini.


Roma (1972) é seu reverso, seu espelho ou seu oposto. Os afrescos descobertos no alto da colina no final de Satyricon ecoam nos achados durante as escavações para o metrô. Muito mais focado em coisas palpáveis, sem deixar de remontar a um passado do cineasta, Roma é o outro extremo que define essa fase histórica, o lado jornalista substituindo o lado circense, o contraste entre a Itália dos hippies e a dos fascistas, com os hippies apanhando dos fascistas nos anos 1970, o que implica uma certa continuidade que Fellini observa muito bem.


Curiosamente, Os Palhaços (I Clown, 1970), feito para a RAI numa tentativa de expurgar o seu lado circense, está entre Satyricon e Roma não só na cronologia. Do primeiro, tem as cores vermelha e preta na tenda do circo, uma predileção por tipos estranhos e a liberdade narrativa. Do segundo, o tom documental e a alternância entre a Itália fascista e a de 1970 (em que Fellini aparece como ele mesmo, isto é, o diretor fazendo seu filme). O crescendo na artificialidade ainda o levaria ao mar de celofane de Amarcord, Casanova e E la Nave Va (1983), embora este último seja já um filme de crise (lindo, maravilhoso filme de crise).


Casanova foi muito mal-recebido à sua época, e ainda é um filme em busca de justiça. Se a bela feiura de Satyricon impressiona, a beleza visual de Casanova é inigualável no cinema do diretor. De fato, é um filme muito bonito, em que a beleza faz todo sentido conforme ela começa a oprimir o protagonista em sua decadência. Estamos no settecento, o século XVIII, do rococó, da beleza esfuziante, do excesso e da aristocracia. Se Amarcord encanta todo mundo com sua beleza agridoce, suas memórias de adolescência em Rimini e conexões familiares fortes, além de personagens cativantes como a Gradisca de Magali Noel, Casanova é impregnado de vulgaridade e fracasso. Uma obra-prima que não negocia com o espectador.


Por vezes, a visão de Fellini acompanha o curso da história ao invés de examinar o já acontecido. Em Ensaio de Orquestra (Prova d'Orchestra, 1978), realizado após a má recepção de Casanova, o cineasta se recolhe a uma espécie de homenagem ao seu compositor de sempre, Nino Rota, morto pouco depois do lançamento italiano do filme na Itália em 1979. Em tom menor, com duração condizente e piscadelas aos melômanos, o longa reflete a turbulência política da Itália da época, com atentados terroristas e o famoso caso de Aldo Moro, sequestrado e assassinado entre março e maio de 1978. Estávamos também em meio à revolução do punk rock. Mas, no filme, essa revolta punk não prevalece. É fogo de palha, rebeldia juvenil. A ordem é retomada, nos escombros. No final, só ouvimos a voz do maestro, com palavras de ordem ditas em alemão com a tela escura. Fellini, como outros modernos, sempre teve resistência a qualquer forma de autoridade. A língua alemã, de algum modo, reforça essa autoridade. Ou seria um comentário do rigor alemão salvando a bagunça italiana para a melhor música possível? O filme, de todo modo, é uma coprodução ítalo-alemã.


Os últimos filmes de um mestre

A morte de Nino Rota foi um golpe para Fellini, e sua ausência implica em uma necessidade de mudança. É possível dizer que parte do cinema do diretor morreu junto com Rota, embora um de seus melhores filmes seja da fase final de sua carreira, E La Nave Va (1983). Fellini precisava expurgar seus demônios e realiza mais um filme impiedoso sobre a decadência do macho italiano, com a volta de Marcello Mastroianni e um monte de personagens caricaturais: Cidade das Mulheres. A música de Luis Bacalov cumpre bem o papel de auxiliar desse expurgo, mas o filme seguinte, E La Nave Va, quase não tem trilha extra diegética. Fala do enterro de uma deusa da ópera, num momento em que eclodia a Primeira Guerra Mundial. As caricaturas são bem reduzidas, indicando uma outra fase, de um entendimento histórico mais poético, de acordo com os anos 1980, década de estabelecimento do “cinema de arte”. Fellini era incapaz de se adequar a esse tipo de filme uniformizado que Pasolini combateu antes de morrer, e realiza aqui uma ode à vida e ao artifício, um de seus filmes mais belos e tristes, como também um dos mais inteligentes.


Os três longas seguintes, os últimos que realizou, são pacificados, a delicadeza dando o tom em Ginger e Fred (1986), crítica menos feroz à TV do que se podia esperar de Fellini, e as caricaturas reaparecem tímidas, como peças de saudosismo em Entrevista (Intervista, 1987), espécie de documentário sobre a Cinecittà que passa também por um entendimento da decadência do cinema italiano, acompanhada e também provocada pelo diretor. O último filme é A Voz da Lua (La Voce della Luna, 1990), encontro de Fellini com um dos comediantes mais famosos da época, Roberto Benigni. É também uma volta à fase puramente onírica. O cineasta nunca teve um protagonista que era também humorista – o mais próximo disso foi Alberto Sordi, que não foi bem um protagonista, nem era bem um humorista. É um último filme melancólico – a voz da lua ou do fundo do poço? – com alguns momentos de muita inspiração e um desenvolvimento desengonçado. Parece que o diretor perdeu a habilidade para o tipo de estrutura que sempre foi seu forte.


Mesmo pacificado, contudo, o diretor nunca abandonou sua poética baseada em sonhos e lembranças, como também numa observação gentil e deliciosamente distorcida da realidade ao seu redor. Foi grande, mesmo nos momentos menos felizes.


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