por Lucas Oliveira
“Grandes palhaços são grandes destiladores da experiência humana; e o que é a arte senão um processo de destilação?”. É assim que Satyajit Ray, o grande mestre do cinema indiano, se referiu certa vez a Charles Chaplin. A arte como processo de destilação – ou de depuração – da experiência humana parece ser, precisamente, a qualificação perfeita para a obra de Ray. Seus filmes, afinal, capturam as complexidades mais sutis e as nuances mais obscuras da vivência coletiva. Pauline Kael, escrevendo sobre “A Deusa” (1960) – talvez a obra-prima de Ray –, colocou o cineasta no mesmo patamar de Ingmar Bergman e Akira Kurosawa. O próprio Kurosawa foi categórico: “Nunca ter visto um filme de Satyajit Ray é como nunca ter visto o sol ou a lua”. De fato, temos aqui um daqueles diretores que abre novos horizontes. Ver um filme seu é ter acesso a uma cultura milenar, rica em tradições e contradições. Não obstante, é também se encontrar de novo consigo mesmo e ser capturado. Os personagens de suas obras, afinal, são como nós, experienciando os grandes momentos e os pequenos instantes reveladores da vida.
Daí a genialidade na metáfora de Kurosawa. Se o sol e a lua são dois astros gigantescos e longínquos, são também as referências cotidianas para a vida na Terra. Na medida em que Ray é um monumento da cinematografia mundial, talvez distante para nós, ele não deixa de ser um cronista do que nos torna, todos, o que somos. Seu primeiro filme, “A Canção da Estrada” (1955), já impressiona. Poucos diretores na história podem se orgulhar de ter iniciado a carreira já com uma obra-prima em longa-metragem que definiria suas carreiras. Orson Welles, sem dúvida, e Sidney Lumet, fazem parte dessa lista. Em Satyajit Ray, porém, pesa também o mérito de ter aberto os olhos do mundo para o cinema indiano, e, consequentemente, para a Índia. “A Canção da Estrada” foi produzido em meio a dificuldades monumentais, contando com o salário do diretor como designer, empréstimos de familiares, venda de discos, penhora de joias da esposa, produtores erráticos e enfim o financiamento intermitente do governo. A aposta do cineasta era uma arriscada dissidência frente ao cinema de entretenimento dominante no país à época.
Acompanhamos, no filme, alguns anos das vidas de Apu (Subir Banerjee) e Durga (Uma Dasgupta), dois irmãos que vivem com os pais, Sarbojaya (Karuna Banerjee) e Harihar (Kanu Banerjee), e uma tia idosa, Indir (a sensacional Chunibala Devi), em uma vila remota no estado de Bengala Ocidental, nordeste da Índia. É o início do século XX, e a fome, tal qual a modernidade, está sempre à espreita. À medida que Apu cresce, ele convive com a rebeldia da irmã, a dureza da mãe, as ausências do pai e a finitude da tia, cuja morte iminente vem pressagiar o fim de um mundo. O filme tinha tudo para colapsar. Afinal, não se trata de um retrato exótico da população indiana ou de uma cópia dos cinemas estadunidense e europeu, que teriam chances mais automáticas de agradar os ocidentais; tampouco estamos falando de um longa-metragem com dança, performances musicais, romance e sequências de ação que poderiam facilmente agradar o público amplo indiano. Ray, por outro lado, faz um filme que flerta com o documentário, com Hollywood e os filmes neorrealistas, mas em momento algum tira os pés do solo indiano.
O turbilhão social e cinematográfico do século XX está, pois, por toda parte. Se Indir, ao morrer, dá lugar ao trem da modernidade que corta a planície rural, como indica a montagem paralela entre as duas sequências, o próprio nascimento do filme deve, esteticamente, a correntes diversas da sétima arte. De um lado temos “Ladrões de Bicicleta” (1948), de Vittorio De Sica, que Ray viu em uma viagem a trabalho a Londres, responsável por convencê-lo de que era possível filmar em locações e com não-atores. Jean Renoir, sinônimo do realismo poético francês, foi quem o encorajou a adaptar o romance “Pather Panchali”, de Bibhutibhushan Banerjee, quando em Calcutá para as filmagens de “O Rio Sagrado” (1951). De outro, coube a John Huston, o classiquíssimo cineasta americano, a tarefa de referendar a qualidade de “A Canção da Estrada”, permitindo que o filme fosse exibido no Museu de Arte Moderna de Nova York – daí para Cannes, com um prêmio, e de volta para Calcutá, com grande sucesso. “O Encouraçado Potemkin” (1925), de Eisenstein, foi o primeiro filme exibido no cineclube fundado por Ray e amigos em Calcutá, e “Rashomon” (1950), de Kurosawa, o que consolidou nele a vontade de ser cineasta.
Ray, nascido em uma família de classe média e tradição artística em Calcutá, teve amplo acesso à cultura ocidental. Fluente em bengali e inglês, desde jovem se apaixonou por Rembrandt, da Vinci, Mozart, Beethoven, Billy Wilder e John Ford, entre outros. Depois de se formar em economia e aconselhado pela mãe a estudar pintura na universidade fundada por Rabindranath Tagore, poeta laureado com o Nobel, Ray (re)descobriu as artes japonesas, chinesas e indianas. “A Canção da Estrada” salta aos olhos com essa miríade de repertórios de um dos cineastas mais eruditos já existentes. Vemos a clássica montagem hollywoodiana que privilegia a continuidade, a logicidade temporal e fluência da narrativa; também o funcionalismo dos movimentos da câmera, que seguem os atores e os reenquadram no plano de forma sofisticada a cada mudança de posição. Do neorrealismo, Ray toma emprestado o foco em uma temática social latente, o naturalismo da filmagem in loco e a preferência por não-atores (os intérpretes de Apu e Durga), não-estrelas (os pais e as vizinhas) e moradores da vila de Boral, perto de Calcutá.
Da própria Índia, por sua vez, Ray aproveita tanto a música ritmada e sensível de Ravi Shankar, à qual o filme deve boa parte de seu lirismo, quanto a filosofia estética, menos aristotélica em termos de compromisso com um roteiro sequencial e causal e mais alinhada ao despertar de emoções coletivas no público. Daí a estruturação da trama, tal qual o livro, em pequenas situações, e o fato de Ray não ter feito um roteiro, mas storyboards com anotações. Renoir, por sua vez, está presente em “A Canção da Estrada” com o que Ray caracterizaria como as “perspicazes observações do comportamento humano e o uso de detalhes”, caso da relação entre Sarbojaya e suas vizinhas e também do uso genial do colar roubado. De John Ford, está aqui o que Ray chama de “momentos casuais com significação poética”, tais como a procissão encabeçada pelo vendedor de doces, seguido por Apu, Durga e o cachorro, cena que levou 11 tomadas para ser gravada.
Este dado, aliás, sintetiza bem a importância de “A Canção da Estrada” para o crescimento do indiano como cineasta. Para que o cachorro seguisse as crianças como desejado, Ray teve que fazer a intérprete de Durga bater palmas e ficar com doces nas mãos atrás das costas para atraí-lo. Estratagema semelhante precisou ser utilizado para que o ator protagonista, caminhasse de forma inconstante e perdida à procura da irmã no campo de flores, a primeira cena gravada em meio a um processo de filmagem e pós-produção que durou quase três anos. Ray teve que aprender o ofício de diretor no decorrer do processo. Onde colocar a câmera, os planos necessários para o fluxo da montagem, como aproveitar a luz natural disponível e outros aspectos práticos do fazer fílmico ainda eram novidade para um cinéfilo-diretor cuja equipe era majoritariamente inexperiente. Subrata Mitra, o cinematógrafo, tinha apenas 21 anos no início da produção.
Jovem era também a república indiana. A independência havia sido conseguida após muita luta em 1947. Os bombardeios a Calcutá durante a Segunda Guerra Mundial, os milhões de soldados mortos durantes os dois grandes conflitos do século XX, a fome generalizada que assolou Bengala Ocidental nos anos 1940 e as centenas de milhares de mortos pela violenta partição que daria origem ao Paquistão e a Bangladesh aparentemente tinham ficado no passado, e o país entrava na rota do desenvolvimento e da modernidade. Mas havia uma questão de primeira ordem para a nascente democracia de 350 milhões de pessoas: como perseguir um ideal de progresso sem abandonar as milenares tradições socioculturais do país? Mais: como um território com 22 línguas oficiais e outras centenas de dialetos, onde um habitante do norte não entende um nativo do sul, poderia aspirar à unidade nacional? A religião hindu e a importância da família parecem ser as chaves para entender a coesão dos indianos neste momento histórico do país, e são capazes de fornecer subsídios fundamentais também para a leitura de “A Canção da Estrada”.
Embora agnóstico por toda a vida, o hinduísmo sempre esteve de tal modo arraigado na cultura indiana que Satyajit Ray não teve como ignorá-lo. Seus filmes recorrentemente assumem um caráter crítico à ortodoxia religiosa, mas compreendem de forma muito precisa a centralidade da crença para as pessoas. Não por acaso, em “A Canção da Estrada” Durga tem no nome a encarnação de Parvati, uma das três principais divindades femininas do hinduísmo. É a Grande Deusa (Devi, também chamada de Kali), forma de Shakti (Poder Universal) adorada por sua graça e seu poder aterrorizante. A personagem pega a pneumonia que lhe será fatal ao ser simbolicamente submergida na água da chuva de monção, tal qual os ícones da deusa durante o festival anual que leva seu nome. Durga, ou Parvati, é a mãe de Ganesha, o deus-elefante que observa impassível a menina morrer por força da natureza. Sua morte, por essa perspectiva, aponta para um motivo recorrente na Trilogia de Apu (e no hinduísmo), como assinala Robin Wood: “A destruição é necessária para a criação”. As duas forças estão eternamente interligadas, e este evento traumático catalisa a partida da família; traz terror, mas também graça.
Sarbojaya e Indir completam a tríade neste filme centrado em mulheres. No primeiro longa-metragem da trilogia, Apu é uma criança que tem pouca agência; ele só será instado a tomar uma decisão moral no fim, ao descobrir o colar. Harihar, por sua vez, é uma figura masculina ausente e impotente, como tantos outros protagonistas de Ray, em “A Esposa Solitária” (1964), “O Covarde” (1965) e outros. Cabe às mulheres o peso da história, que Chunibala Devi carrega gentilmente no rosto expressivo, treinado por décadas no teatro/cinema silencioso e resgatado do ocaso por Ray. É Sarbojaya, porém, que parece ser a personagem mais interessante. Karuna Banerjee transborda no olhar o “problema sem nome” que Betty Friedan só identificaria quase uma década depois nas donas de casa estadunidenses. Para a mãe de Apu, contudo, até o vazio burguês da classe média seria um sonho distante. Por isso, mesmo suas atitudes mais questionáveis podem ser lidas como um pedido desolado por empatia. Sarbojaya é a Stella Dallas que renega estoicamente a própria realização em favor dos filhos, como “O Invencível” (1956) provará.
É essa complexidade, de personagens que são multifacetados, falhos e fascinantes, que Satyajit Ray captura com maestria. Capaz de sublimar seu repertório ao nível da perfeição, com símbolos universais, seus filmes combinam uma rara densidade emocional à mais refinada técnica cinematográfica. O que dizer do fato de que o som agudo do tarshenai foi adicionado à cena da descoberta da morte de Durga por Harihar no último instante porque Ray achou a reação de Karuna Banerjee insuficiente? Não obstante, trata-se do momento mais forte do filme, igualmente denso do ponto de vista emocional e refinado no plano técnico. E como acreditar que Subir Banerjee precisou de orientações para atuar? Desde o início, com seu despertar ascendente, ele marca o nascimento de um novo cinema indiano. Também de um novo país. De um gigante do cinema, igualmente. Um elo entre o sol do Oeste e a lua do Leste (ou vice-versa), com os pés fincados em Calcutá. Sem dúvida, para nós brasileiros importa dizer que, 20 anos antes, o cineasta-escritor já antecipava a defesa da Estética da Fome tal qual Glauber Rocha. Também que nosso aclamado “Vidas Secas” (1963) bebe claramente da fonte deste primeiro filme do indiano. Mas, por muito menos, Satyajit “Manik” Ray e sua carreira já mereceriam nossa atenção. Para muito mais, “A Canção da Estrada” é só o primeiro grande passo no caminho.
Referências
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