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ÉDIPO REI, DE PASOLINI, UMA FÁBULA SOBRE O FASCISMO E O AUTORITARISMO POPULISTA

por Luiz Paixão


A experiência de ter vivido sob o fascismo e sua declarada ligação com o Partido Comunista, incorporaram ao cinema de Pasolini (1922-1975) compreensões e perspectivas que não podem ser desconectadas de suas opções estético-ideológicas. Colocando-se ao lado da classe trabalhado e sustentando uma acirrada luta contra o fascismo, colocou sua obra na defesa intransigente de uma sociedade mais justa e igualitária. Em seus escritos, reunidos no livro Os jovens infelizes, deixa patente sua postura crítica e autocrítica em relação ao fascismo: “não fizemos nada para que os fascistas não existissem. Limitamo-nos a condená-los, gratificando nossa consciência com a nossa indignação; e quanto mais forte e petulante era a indignação, mais tranquila ficava a consciência”.


O filme Édipo rei, de 1967, é uma adaptação da tragédia homônima, escrita por Sófocles e apresentada pela primeira vez provavelmente em 430 a. C., discute as relações sociais concretas, produzidas por um governo autoritário e fascista, que se reflete no comportamento de seus personagens.


A adaptação pasoliniana resgata do mito, por meio de uma aproximação histórica e através de seus elementos sonoros e visuais alegóricos, as relações sociais concretas, revelando na parábola do presente com o passado um governo fascista, que se traveste no populismo autoritário do herói sofocliano.


Ainda durante os letreiros de apresentação, ouve-se uma marcha militar que nos transporta para um tempo e um espaço, definido no prólogo do filme, que é reconhecido na melodia e na caracterização de Laios (pai de Édipo) como um militar, e nos revela a luta pelo poder, que é flagrada na decisão de Laios de mandar matar o filho, ainda bebê, por tomar conhecimento pelo Oráculo de Delfos que seria assassinado por ele, e que o filho se casaria com a mãe, Jocasta, o que define a trama da tragédia original. A decisão de Laios nos é apresentada por meio do recurso formal de um letreiro extrafílmico, que também contribui para definir a estética da obra. Também no prólogo, se estabelece o contraditório aos elementos fascistas, num momento de grande significação política, em que nos apresenta um grupo de crianças cruzando a cena empunhando uma bandeira preta, símbolo do anarquismo que se confronta com o fascismo.


Sempre revelando uma postura claramente social, Pasolini investe no caráter popular como substância em sua opção estética e formal, o que vai se caracterizar, por exemplo, e a meu juízo, em sua preferência pela participação de não-atores em sua filmografia, bem como a utilização de figurinos e elementos cenográficos com nítida influência da cultura popular. No filme, podemos perceber essa condição na utilização dos elementos populares, que se manifestam tanto nos figurinos, que dialogam com as máscaras “folclóricas” e rústicas, na definição de personagens alegóricos como o Sacerdote de Delfos ou a figura enigmática da Esfinge, ambos se caracterizam como figurinos sagrados de origem religiosa popular.


Importante observar também que existe, de maneira bastante significativa em seus filmes, um caráter irrealista que nos produz certo estranhamento, em que a forma se expressa para nos tirar da zona de conforto produzida pelo realismo, nos causando um incômodo estético, o que contribui para um diferenciado entendimento da fábula apresentada. Pasolini lança mão de diversos recursos que revelam a realização metalinguística no caráter fílmico-teatral que produz esse efeito de distanciamento. Como exemplo, podemos observar a forma expressivo-corporal com que o diretor brinca com a força do destino, elemento característico da tragédia grega, insistindo no gesto de tapar os olhos e girar o corpo em torno de si mesmo para nos mostrar que as decisões do herói estão subordinadas à vontade implacável dos deuses, pois já havia sido determinado que Édipo mataria o pai e casaria com a mãe. Sempre que ele se vê diante de uma encruzilhada, ele repete esse movimento expressivo-corporal e, em todos, o caminho que deve seguir, demonstrado por uma placa indicativa, o leva a Tebas, onde se encontrará com seu destino final. A narratividade do filme nos apresenta um recurso formal bastante explorado no cinema mudo e que ganha uma nova dimensão como produtor de uma quebra da linearidade da ação: os letreiros que “apresentam” o pensamento do herói nos confrontam com um recurso extrafílmico, destacando alguns momentos de maior relevância para uma melhor compreensão sobre o comportamento do personagem.


Uma característica de grande importância na adaptação da obra Édipo rei é a transposição histórica (assim como seria realizado de maneira muito mais aprofundada no filme Saló), em que se realiza um rompimento com lógica espaço-temporal da ação: no Prólogo e no Epílogo, o tempo e espaço sofrem uma ruptura radical, nos mostrando os antecedentes da ação e sua continuação após os fatos que determinaram a ruina do herói.


A aproximação espaço-temporal empresta o caráter histórico e dialético à fábula, buscando estabelecer, por meio da parábola, que acentua a aproximação fabular com os tempos atuais, realçando as relações de poder que são relevantes. No prólogo, Laios é um militar; no epílogo, Édipo é um deficiente visual que a todo instante reclama pelo seu guia, estabelecendo uma autoridade sobre ele. Não há que se relevar o cenário apresentado no epílogo que, além de aproximar alegoricamente o herói ao adivinho Tirésias (o guia de Édipo é o feito pelo mesmo ator que interpreta o guia de Tirésias), ressalta o contraponto de classe ao nos apresentar fábricas e operários que constroem uma cenografia proletária. Como destacou o filósofo italiano Giorgio Agaben, “Pasolini nasceu num país cuja população era composta em 70% de camponeses e na qual o fascismo havia procurado conciliar a industrialização com o controle social”, e isso se reflete em todo o filme na presença dos pastores e camponeses, bem como no epílogo, como uma homenagem à classe trabalhadora.


As contradições de Édipo são apresentadas de forma a possibilitar a construção de um personagem complexo em suas relações, que nos permitem uma percepção de um homem não-monolítico que, ao mesmo tempo exibe o seu caráter ético em sua convivência social tanto quanto em sua autoridade de governante (ao ir ao encontro do Oráculo, não se utiliza da prerrogativa de ser filho do rei de Corinto e, como todos, entra na fila e aguarda sua vez), nos revela também sua contraparte dialética que se manifesta em sua arrogância e sua deslealdade para com o outro (como no caso da disputa do lançamento de discos, em que se mostra desonesto e, imediatamente após, se revela um arrogante que não se permite ser questionado em suas vontades).


Édipo rei é um filme extremamente rico em alegorias, que, como ensinou Walter Benjamin, “não é frívola técnica de ilustração por imagens, mas expressão, como a linguagem, e como a escrita”, elemento fundamental para compreensão da figuração da realidade concreta na obra. O Édipo de Pasolini é um homem movido pela força e pela arrogância, pelo populismo e autoritarismo. Do homem astuto e decifrador de enigmas, temos um herói que se impõe pelo grito e pela ameaça, pois, até mesmo sua disputa com a Esfinge se dá por meio da força bruta: ele não decifra o seu enigma, mas, em luta corporal, a empurra para o abismo, libertando Tebas e conquistando o direito de se casar com sua mãe, a rainha viúva Jocasta.


Édipo rei é um libelo contra o autoritarismo populista e contra o fascismo. Pasolini foi um artista que dedicou sua obra à luta pela liberdade e pela democracia. Sua filmografia resiste ao tempo, e ainda hoje nos provoca reflexões que devem ser consideradas nesses tempos em que o fascismo, mais uma vez, nos ameaça. Édipo terceirizava suas responsabilidades em vez de as assumir perante seus governados; hoje, o que assistimos não é diferente. Talvez, Édipo rei, de Pasolini, nos proporcione uma reflexão e nos impulsione a uma tomada de posição diante de uma realidade que se nos apresenta. Essa é a função da arte: provocar sempre! Pasolini sabia como provocar.

 

*Ensaio publicado em diálogo com a mostra O Cinema Segundo Pasolini, realizada pelo Consulado da Itália em Belo Horizonte, Instituto Italiano de Cultura no Rio de Janeiro e Fundação Clóvis Salgado, através do Cine Humberto Mauro.

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