Rebento, enquanto substantivo, pode significar o início do germinar de uma planta; ou então filho/descendente (fig.); e, ainda, produto/fruto (fig.). Enquanto verbo, a palavra expande ainda mais: é algo que pode estourar, explodir, desabrochar, irromper ou, simplesmente, nascer. É uma palavra que parece pressupor o crescimento/continuidade de alguma coisa.
Nos créditos de Rebento, de Vitor Faria (2024), ouvimos uma versão da canção de Gilberto Gil, que define poéticamente a palavra – justificando o título do filme: “Rebento, a reação imediata / A cada sensação de abatimento / Rebento, o coração dizendo: "Bata" / A cada bofetão do sofrimento / Rebento, esse trovão dentro da mata / E a imensidão do som / E a imensidão do som desse momento”. O filme caminha por essa definição ampla, passeando pela performance e pela experimentação como possibilidade de explorar os movimentos de um corpo, especialmente em sua relação com as máquinas – os carros em trânsito ininterrupto e a própria câmera.
No início de Rebento, somos sufocadas pela poluição sonora da metrópole. Os corpos atravessam a tela como se fossem parte do tráfego exagerado de veículos. Não é possível reconhecer ninguém, porque naquele cenário as pessoas ocupam uma função: ir de um lugar para outro sem interromper o fluxo. Os corpos se dissolvem nas cores saturadas em meio à mistura de gente e máquina. Quando a câmera foca num rosto, em primeiro plano – um homem seguindo seu caminho rotineiro –, o engarrafamento é interrompido. Ele parece não dar conta de seguir no embalo coletivo da repetição artificial.
Assim, no meio da rua, do caos, da feira (um pedaço de orgânico no concreto), seu corpo sai do automático e se remexe de maneira estranha. Ele entra em transe. O andar rápido da rua é quebrado por seus movimentos peculiares. A câmera titubeia junto dele. Ele tenta continuar andando, mas o movimento é incontrolável. Mais de um corpo habita aquele único corpo. Num registro em fita cassete, sua performance é interrompida por “falhas” que, aos poucos, tomam toda a cena. O ato se transforma num filme queimado, talvez porque a câmera não possa registrar esse corpo que saiu do status quo. Restam os fragmentos de uma quase-dança.
Em seguida, voltamos para um plano aberto da cidade. Enfim, parece haver alguma paz. Os ônibus seguem em harmonia, como se caminhassem ao som de uma música doce. Ao fundo, num viaduto, uma figura pequena – que pode desaparecer a qualquer momento – dança. Seus movimentos não-lineares a diferem das máquinas – com curvas, subidas e descidas. O corpo é pequeno na avenida, pequeno ao lado dos ônibus, mas se recusa a permanecer parado – e com isso afirma uma persistência na vida.
Depois, entram fragmentos de corpos bem próximos: mãos, rosto, orelha, cotovelo… Entre o fôlego de uma dança – com sons que presumem a presença de uma pessoa viva. Não é uma máquina que dança: é um corpo que respira, faz barulho quando os pés tocam o chão, ou quando tropeça de um lado para o outro, levando o ar consigo e tocando outro corpo, diferente do seu. A última dança de Rebento é, então, substituída por uma performance mínima: num apartamento, a câmera segue um corpo, de homem, e os contornos de sua pele se misturam ao brilho saturado da fotografia, junto dos “ruídos” e “falhas” da imagem. O corpo anda sem pressa, entre portas e corredores que não parecem ter fim. É como se seu andar, em ritmo próprio, também fosse uma dança – não coreografada. Enfim, há um respiro depois do fôlego acelerado da relação corpo-máquina. A figura do homem também pode descansar: seus contornos desaparecem aos poucos junto dos glitchs destrutivos do registro/efeito da fita cassete. Tudo vira ruído e cor, simplesmente.
Este texto crítico foi escrito por Larissa Muniz, crítica e pesquisadora, para a obra "Rebento" (Vitor Faria, Brasil, 2024), exibido em 22 de fevereiro de 2024, na programação do Prêmio Humberto Mauro.
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