por Gabriel Araújo
Mais uma espécie de compilação do que crítica, o presente texto busca ampliar as possíveis conversas a partir de “Accattone – Desajuste Social” (1961), primeiro filme de Pier Paolo Pasolini. Para isso, toma como base cinco planos que parecem intrínsecos à própria narrativa do longa, à motivação de seus personagens e a uma Itália ainda despedaçada pelo fascismo e pela guerra.
Vittorio Accattone aparece em pé sobre o parapeito de uma ponte. Abaixo dele, fora de quadro, está o rio Tibre, que corta a cidade de Roma. Magro, usa apenas um short de banho. Olha resoluto para a frente, sem ousar abaixar, nem muito menos erguer a cabeça – não lhe interessa o futuro e o passado, apenas aquilo que está diante de si.
Talvez por isso não perceba a figura angelical em segundo plano, grande estátua de um anjo que, segurando uma também grande cruz, parece, de longe, abençoar a figura daquele homem. Pela composição do quadro, é quase possível enxergar a linha que une a brancura do mármore da cruz ao corpo esguio de Vittorio, que quebrará essa conexão logo em seguida, com o pulo na água.
O plano representa bem o binômio morte e vida que ajuda a caracterizar “Accattone”. No longa, essas duas questões estão interligadas de maneira quase que indistinta, coexistindo no mesmo plano, como descrito, e na mesma narrativa. O protagonista, por sua vez, não apenas se dá conta dessa dualidade, como parece satisfeito em habitar esse entremeio. “Vamos! Façamos o povo feliz!”, ele diz, antes de pular no rio, arriscando a própria vida a troco de uma aposta.
Não é que queira morrer – desconfio de suas intenções. O ponto talvez seja que, sendo um desajustado nesse mundo que preza o trabalho, o mérito e o esforço, existe, para ele, uma espécie de conforto na morte. Se não pela possibilidade do descanso eterno, ao menos pelo orgulho de um escape certeiro da vida tal qual ela é.
Accattone não é o único desajustado do filme. Stella, a personagem que ele encontra na metade da narrativa, também colabora para dar mais profundidade e complexidade à adaptação dessa Itália em ruínas e desses personagens abandonados.
O plano em questão define o fim da primeira – e frustrada – noite da personagem como prostituta. A cena contrasta com sua primeira aparição, inicialmente cercada por uma aura que beirava à pureza, de uma mulher intocada, tanto por outros homens, quanto pelo mundo que a cerca.
Há uma quebra brusca entre essa primeira imagem e a que aqui apresento. Surgindo do escuro, solitária em uma via erma, sem outras pessoas ou mesmo signos de vida por perto, Stella é iluminada apenas pelo farol de um carro que cruza seu caminho. A figura, quase fantasmagórica em meio ao breu, cabisbaixa, de aparência triste, nada lembra o semblante daquela mulher suja de graxa que, mesmo pobre, consegue esboçar um sorriso na cena em que é apresentada.
Diferentemente da Cabíria de Fellini – do filme “Noites de Cabíria” (1957), cujo roteiro também contou com a colaboração de Pasolini –, que encontra esperança mesmo frente à desilusão, Stella não sorri ao fim. Parece aceitar o amargor que tomou conta de sua vida, já que se sujeitar a essa realidade parece ser mais fácil do que simplesmente confrontá-la.
Numa das sequências mais ousadas do filme, Pasolini se utiliza de toda uma tradição do cinema surrealista para construir o sonho que assombra Accattone. Novamente, lá está a morte; o fantasma de uma guerra que ainda vitima e tortura, a si e aos seus.
Ao ver seus amigos mortos, nus, sobre os escombros de uma construção, Accattone parece materializar a violência que os ronda, criando imagem e, portanto, memória, para uma situação que até então habitava apenas o discurso. É como se, ao vislumbrar um passado que poderia ter acontecido, Accattone previsse uma espécie de futuro ao qual ele estivesse destinado.
Quando tal futuro chega, eis o ponto: ele é só mais um entre muitos. Pois, ao passo em que Accattone ignora o cortejo fúnebre que ocorre atrás de si, duas crianças observam esse desfile atentamente, e ainda fazem o sinal da cruz, em respeito.
No plano, marcado por uma significativa profundidade de campo, as direções dos acontecimentos também aproximam e distanciam personagens. Accattone anda reto, para frente, sempre buscando alcançar aquilo que está fora de quadro. O cortejo segue na outra direção, do outro lado da rua, perdendo-se no horizonte da cena e da cidade. As crianças, ao lado de Accattone, fazem a ponte entre as vias, demarcando uma tragédia que perpassaria gerações. Os três contextos, isolados, contudo conectados por uma narrativa de miséria e sofrimento.
Porém, nem tudo é tragédia, no final das contas. E os diversos momentos de puro prazer no longa denotam como coexistem o riso e o choro, o amor e o ódio, a dor e a alegria, nessa relação que encontra, no ápice, os extremos da vida e da morte. Em suma, complexos, tal como a própria realidade que Pasolini tenta capturar.
*Ensaio publicado em diálogo com a mostra O Cinema Segundo Pasolini, realizada pelo Consulado da Itália em Belo Horizonte, Instituto Italiano de Cultura no Rio de Janeiro e Fundação Clóvis Salgado, através do Cine Humberto Mauro.
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