por Helena Elias
No início de Satyricon (Fellini, 1969), vemos um homem franzino em uma toga contando uma série de injustiças que teriam acometido seu amante. Enquanto ele esbraveja, a câmera se aproxima, num dos raros zoom-in do filme. Trata-se de Encólpio – o mais perto que chegamos de um personagem principal. Nas cenas seguintes, o brando solitário de Encólpio encontra a paisagem monumental de uma fortaleza e seu corpo contém e é contido por outro num embate que termina no chão. O bacanal mostrado concilia torturas e danças, tornando indiscernível o começo de uma volúpia do fim de uma flagelação. A obra é uma adaptação da sátira latina Satyricon, escrita por Petrônio. Fellini conserva a estrutura fragmentária da obra como nos foi legada, lacônica, apresentando intermitências míticas – uma lógica do ambíguo, do equívoco, da polaridade. A toada da decadência e o detalhamento da descrença generalizada nas relações sociais são ritmados por evocações de contos mitológicos da Grécia antiga. Os personagens contrastam a si mesmos com a destinação dos contos como se não restasse um horizonte de esperança ou um campo de ação possível. Ao mesmo tempo, a estrutura episódica do filme assemelha-se ao funcionamento dos mitos, e, ao espectador, parece que tudo pode acontecer, uma vez que a sucessão dos eventos não parece estar submetida a nenhuma regra lógica (Lévi-Strauss, 2008).
A câmera privilegiadamente estática capta com distância a disputa pelo jovem Giton, sem aproximar-se da perspectiva de ninguém em cena. Os corpos aplaudem a discórdia. A paisagem é uma das grandes termas românicas, onde há corpos parados, duplas que caminham lado a lado, algo no chão que faz com que emerja uma fumaça. Em planos mais aproximados, vemos algumas pessoas que olham diretamente para a câmera, como se fossem destacadas da disseminação generalizada e formassem uma nova figura sobre o que já figurava. Sons eletrônicos dispersos acompanham uma viagem pelo interior da edificação monumental, as personagens grotescas são muitas, nada parece ser passível de ser colocado em unidade. Após ser recusado por seu amado Giton, Encólpio lamenta a própria incongruência diante das narrativas gregas. A cena é filmada em um salão onde se encontram quadros e peças da estatuária grega, em que os corpos dos deuses estão representados – Apolo, Narciso, Ganimedes –, e clama “todos os mitos falam de amor”.
Encólpio encontra Eumolpo, o poeta, que declara, tanto no filme como no texto de Petrônio (2008), que está malvestido pois “o amor pelo talento nunca deu riqueza a ninguém”. Ele menciona que os sábios predecessores tinham tanto afinco com seus objetos de pesquisa e tanta certeza de que a virtude era o ideal da vida, que levavam vidas justas e simples, quando não acabavam paupérrimos pela obsessão que tinham por seus estudos. Se as personagens afirmam repetidas vezes a deflação dos valores morais de seu próprio tempo, os cenários e as multidões em cena são amplamente apologéticos à grandeza. Se falta pensamento crítico aos personagens que se encerram numa pequenez desmesurada, não faltam dimensões ciclópicas aos cenários – sejam nas cenas gravadas no set ou ao ar livre. Esta imagem depravada do passado não vai embora sem que pensemos nos ideais do culto della romanità, as práticas fascistas que oportunamente evocavam a continuidade entre fascismo e a herança romana, estabelecendo um paralelismo entre a grandiosidade de outrora e o poder do próprio partido fascista.
A caracterização das personagens tem proximidade com o grotesco, Fellini teria recorrido às pinturas de Pieter Bruegel para acessar um acervo de significantes do que corresponderia a um bando de pessoas preguiçosas, passivas e estúpidas (Aldouby, 2013). O diretor, porém, recusa pôr em cena um tableau vivant e opta por incorporar a pintura à estrutura do filme, com as cores sobretudo terrosas, assim como as atividades nonsense que são normalmente insinuadas pelas pessoas nos quadros. Apesar de se tratar de cidadãos médios, nas pinturas de Bruegel, eles são sempre apresentados como fazendo parte de grandes quebra-cabeças, executando ações desordenadas, sem finalidades explícitas. Ao pintor não interessavam figuras individuais, muito menos se se tratasse de heróis, mas costumava pintar camponeses, ainda afastados do que seriam os “preceitos da sociedade civil” (cf. Honig, 2019). Fellini se aproxima desta imagerie mas também para subvertê-la, uma vez que nega amplamente que a passagem para tal sociedade civil ajudaria no cultivo de ideais mais republicanos que dissessem respeito a alguma partilha do espaço político. O que parece acontecer em cena é a concomitância material dos corpos em determinados espaços, mas nunca é possível predicar deste amontoado de corpos alguma transformação qualitativa que transformaria os muitos em um coletivo coeso.
Não quer dizer que os corpos em cena não entrem em consonância, afinal, em muitas das cenas há danças conjuntas, ou mesmo risadas que se alastram por todo o salão, e até mesmo orgias. No entanto, nenhuma ação individual parece ser capaz de superar a alienação generalizada que envolve os movimentos de todos os corpos. É impossível que alguém realize uma ação totalmente espontânea ou que, pelo menos, nos ofereça algum tipo de consolo. Quando filmados em primeiro plano, não temos a sensação de estarmos mais próximos dos personagens, bem ao contrário, temos certeza de que é implausível traçar qualquer relação de empatia com cada um deles. Fellini opta também pelo mínimo de movimento da câmera no sentido de traçar uma objetividade repugnante e assustadora que caracteriza os personagens, sugerindo um forte sentimento de distanciamento e alienação.
Sincrônico a esse distanciamento, é interessante perceber como as cenas são bem orquestradas, como se fossem coreografias. É certo que, se algo rege o conjunto desses corpos, é o caos: línguas dissonantes, etnias múltiplas e maquiagens que saltam aos olhos. Existem momentos em que a desordem é interrompida justamente para a celebração de compromissos cívicos, como é o caso do casamento de Encólpio. A cerimônia acontece em uma embarcação em pleno mar, todas as pessoas fazem movimentos retilíneos dignos de uma disciplina militarizada, entoam cantos e gritos coincidentes. Os homens enfileirados têm as mãos para trás, e, entre os gritos de “felicidade”, os noivos selam seu compromisso com movimentos aparentemente automáticos, olhos quase nada emocionados. Ainda que a balbúrdia seja a toada geral do filme, observamos que há sempre espasmos que mencionam a instauração da civilidade ou mesmo a perpetuação de cerimônias e costumes de maneira disciplinada. Porém, a adesão ou a não adesão dos personagens ao todo parece estar sempre marcada pela carência de autonomia, seja quando se apresentam como corpos disciplinados ou quando estão em pleno bacanal.
Há algumas imagens dissonantes dos episódios da falência ou da repercussão dos costumes cívicos, em que nós, espectadores, somos pegos de surpresa, pela grandeza pura e simples, dissociada da crítica social direta, como quando, em um plano surpreendente, soldados pescam com uma corda uma baleia enorme. Dispostos em lados opostos e simétricos à baleia, esforçam-se para fazê-la subir à embarcação, são filmados contra o sol, não vemos as formas com distinção, mas tão somente recortes de formatos variados. A grandeza sem precedentes também pode ser observada em uma cena anterior, quando as paredes de uma das fortalezas começam a desabar ex nihilo. O barulho do desabamento e dos gritos desesperados é acompanhado por cavalos relinchantes, que saltam alto, estilhaçando a cena, tudo acontece no escuro, de maneira que também não observamos os limites das superfícies. O sentimento aqui despertado evoca de maneira ambivalente o prazer e o temor, algo como o sublime: “uma relação de ameaça diante da grandeza do que quer que seja, pois nela pressentimos uma potência capaz de nos destruir” (Figueiredo, 2011, p. 40). O encontro com o sublime suspende temporariamente a atmosfera de decadência do filme, mostrando que os personagens podem, a qualquer momento, sucumbir, a despeito de suas crenças e costumes devassos. São cenas super imersivas que convidam a um encontro com imagens vivas e palpitantes, funcionando como fronteiras de sensibilidade entre os relatos episódicos do filme.
As cenas eróticas não parecem ter tanta potência, uma vez que perpetuam a anarquia que já ocorre em todos os âmbitos do filme, não funcionando mais como um intervalo irrefletido dentro da dinâmica do interdito, mas dando continuidade à lógica de todos os acontecimentos – a libertação perpétua de todos os impulsos. O erótico perde seu caráter de jogo, de alternância entre presença e ausência, formando uma continuidade com o decorrer dos acontecimentos, e não proporcionando, ao fim e ao cabo, aquela experiência de recalcitrância acerca dos limites de um objeto. Aderindo a uma estrutura geral, os corpos dos personagens parecem incessantemente seguir um rumo por influência de um primeiro impulso – não importando se de caráter civilizatório ou libertário –, em qualquer uma das ocasiões, irreconstituível.
Vemos características da obra felliniana como um todo reverberar no filme: o recurso à riqueza expressiva e à grandiosidade, que não culmina numa redundância, mas numa multiplicação de sentidos possíveis. A agência do irônico e do satirizante, de construir um filme estruturado à base de antíteses, negações e inversões que vão descolando os signos de referentes, apresenta as condutas dos personagens com um distanciamento notadamente crítico (cf. Martins, s.d.). Assim, Fellini dialoga com os mitos à medida que põe à prova seu caráter atemporal e traduzível, de modo a formar uma estrutura permanente, que se refere simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro, que é passível de ser reapropriada independentemente da qualidade de sua tradução (cf. Lévi-Strauss, 2008). Diante do mito e de sua possibilidade educativa, de conter uma explicação simples para fenômenos complexos, teríamos a própria origem da racionalidade. Contudo, o diretor encara com olhar dubitativo as possibilidades de reapropriação do mito – não que ele tenha que deixar de ser narrado, mas talvez suas metamorfoses já não sejam mais capazes de inspirar nossa imaginação política.
Com sua característica mitomórfica[LM1] , com episódios que se combinam pela relação que estabelecem uns com os outros na cadência da pulsação do absurdo, Fellini evidencia, em seu Fellini-Satyricon, o perigo daquilo que não se inscreve mais na história e devêm eterno. Convida a uma recusa radical da narrativa da civilidade ocidental, não pela via da sugestão de uma utopia, mas pela exposição da covardia inerente à repercussão de um modelo, ou ao menos da tentativa de reprodução. Como Almeida Salles (cf. Fabris, 2023) antevia, o sagrado laicizado seria a própria dimensão do olhar de Fellini posto sobre as coisas e os seres. Pois a Roma antiga não é capaz de incorporar os preceitos cidadãos a partir do mito de origem grego, e a imanência radical do encontros dos corpos sem destino produz alguma noção de abundância, mas nunca uma noção de comum. Não há nada mais anárquico que o poder de um grande império.
Referências
ALDOUBY, Hava. Federico Fellini: painting in film, painting on film. Canadá: University of Toronto Press, 2013.
FABRIS, Mariarosaria. Fellini no Brasil. 2023. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/federico-fellini-no-brasil/.
FIGUEIREDO, Virgínia. O Sublime explicado às crianças. Trans/Form/Ação, Marília, v. 34, p. 35-56, 2011.
HONIG, Elizabeth Alice. Pieter Bruegel and the idea of human nature. Londres: Reaktion Books Ltd, 2019.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Tradução: Beatriz Perrone-Moisés. Rio de Janeiro: CosacNaify, 2008.
MARTINS, Luiz Renato. Amarcord. 2022. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/amarcord/#_ednref8
PETRONIUS. Satyricon. Tradução Cláudio Aquati. São Paulo: CosacNaify, 2008.
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