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Cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente.

por Vitor Miranda


Se no cinema clássico o diálogo cumpre uma função de avançar a narrativa de um filme, no cinema de Preston Sturges o filme serve muitas vezes para apenas gravar o diálogo.


Muito do seu sucesso pode ser facilmente atribuído a suas habilidades com o roteiro, sempre recheado de sagacidade e com uma literalidade única. Foi o primeiro grande roteirista que se aventurou nos caminhos da direção e venceu o primeiro Oscar de Melhor Roteiro Original, abrindo o caminho para nomes como Billy Wilder, Samuel Fuller e Joseph L. Mankiewicz. Diálogos acelerados, situações farsescas e o desenvolvimento de personagens espirituosos são características marcantes das screwball comedies, as comédias malucas, que moldaram a forma que o gênero se consolidou na indústria. Porém, certas características e peculiaridades diferenciam Preston de seus companheiros Howard Hawks e Ernst Lubitsch.


Em sua autobiografia Sturges descreve seu processo de escrita, que ele chama de "sistema de gancho", como um estilo de escrita em que uma palavra ou conceito na fala de uma personagem é pego, ou ligado, pelo próximo diálogo resultando em uma elegante (e potencialmente interminável) cadeia de linguagem. Talvez o exemplo mais literal dessa técnica seja no início de "As Três Noites de Eva" (1941), quando o personagem Hopsie retorna da Amazônia e está embarcando para o encontro de Eve, antes dela sem motivo algum derrubar uma maçã na sua cara (em uma das muitas brincadeiras bíblicas do filme) vemos a tripulação do barco comentando sobre o protagonista, onde se percebe a técnica de maneira mais clara.


[discussing a prior 'serious' film]

LeBrand: It died in Pittsburgh.

Hadrian: Like a dog!

John L. Sullivan: Aw, what do they know in Pittsburgh...

Hadrian: They know what they like.

John L. Sullivan: If they knew what they liked, they wouldn't live in Pittsburgh!

[Contrastes Humanos, 1941]



Isso aliado a uma maneira acelerada em que as falas são expostas dá ao diálogo um ritmo muito característico, reforçando o conflito da cena e içando o espectador. Seus filmes têm uma grande energia fonética. São rico em ideias, vocabulário e piadas. Ao contrário de alguns de seus contemporâneos, como Orson Welles (especialmente em Cidadão Kane), que estava experimentando diálogos sobrepostos e inaudíveis, seu diálogo é sempre captado para ser ouvido claramente pelo espectador, mesmo que seu conteúdo seja confuso.


Os discursos confusos e atrapalhados de seus personagens, sempre visando à comédia, dizendo coisas que não fazem sentido para a trama ou que não avançam a narrativa, são grandes contribuições de seu cinema para nomes como Wes Anderson, irmãos Coen e Quentin Tarantino. A eloquência de seus personagens e a forma que Preston desconstrói a língua inglesa também estão nessa conta. Ele se diverte com malapropismo (uso de uma palavra incorreta no lugar de uma palavra com som semelhante, resultando em uma expressão sem sentido), aliteração (“O rato roeu a roupa do rei de Roma”), assonância (repetição de vogais, de forma a produzir uma sonoridade peculiar aos textos), sotaques forçados e exagerados, frequentemente os personagens não se entendem, dizem nomes engraçados e inventam linguagens confusas.


Charles: Cecil?

Jean: [as Lady Eve] It's pronounced "Sess-il".

[As Três Noites de Eva, 1941]



Como grande mestre da comédia dramática, toda essa quimera da linguagem está sempre dentro de um contexto farsesco típico das comédias malucas, com um olhar cínico e analítico para questões do trabalho, dinheiro e situações sociais e de poder. Frequentemente torcemos para os bandidos em seus filmes. Em qual outro gênero cinematográfico é possível tensionar valores morais postos de forma que pareça inocente e inofensivo que não seja na comédia? Na sua última regra para uma comédia de sucesso, já havia avisado: Quando alguém cai de bunda no chão é melhor que todo o resto.

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