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Adolescência e Feminino: um encontro na alma

por Mônica Campos Silva


Baseado em um livro de Daniel Woodrell, Inverno da Alma foi indicado ao Oscar de melhor filme e foi vencedor do Festival de Sundance em 2010. Uma produção atemporal, sensível e também angustiante.


O filme começa, é inverno, Ree se ocupa das funções da casa, dos irmãos e da mãe. Ainda nesse primeiro momento, assistimos ela ser abordada pelo policial, xerife da cidade, sobre o fato do pai ter sido preso e ter dado a casa como fiança e garantia de comparecimento a uma audiência. Como a mãe está doente ela toma para si a responsabilidade de fazer com que o pai apareça, sob pena de perderem a casa e a madeireira. A mãe de Ree é mais uma responsabilidade desta jovem de 17 anos, não respondendo ao chamado da vida, mortificada. O que é transmitido a Ree? Ela se vê capturada em uma condição pouco favorável socialmente e faz emergir algo do ideal, considerando-se capaz e suficiente para tratar a situação, é uma questão de família. Dessa ausência das funções, isto é, um pai ausente, adicto e irresponsável, produtor de meta anfetaminas e uma mãe que não cuida, não deseja, evidenciando um gozo desconhecido, Ree se vê imbuída de cumprir, em sua realidade, essas atribuições. Ela dá o que ela não tem. Ela não tem um modelo a seguir, mas porta-se como um adulto no campo do fazer. Há uma imiscuição do adulto na criança, ela antecipa a posição adulta. Seria um modo de lidar, com o que não aparece, sua feminilidade? É decidida, não procrastina. Percebe a injustiça sobre ela e sua família e a justiça cobrada de seu pai e não se vitimiza, tentando resolver a cada tempo as dificuldades. Mostraria ela certa indiferença ao corpo, aos riscos ou mesmo aos afetos como uma escolha sintomática diante da situação a qual está confrontada? Isso poderia ser uma atualização de sua fantasia em plena adolescência, fazendo com que Ree embarque em uma missão para encontrar seu pai que sumiu sem deixar vestígios. Ree desafia os códigos e a lei do silêncio arriscando sua vida para salvar sua família. Esse percurso só será possível ao se confrontar com a verdade sobre seu pai, não há outro caminho.


Diante do encontro com um impossível, o sujeito organiza um possível para si de uma relação com o gozo, esse é o seu sintoma. Entretanto, o impacto está na ausência de borda que o sujeito se coloca, ela não faz barra às concessões, é sem limites ao se colocar em extremo risco durante quase todo o filme.


Vemos como o cenário gelado é parte importante da trama e ajuda a compreender e vivenciar não só a dificuldade pela sobrevivência, mas também as posições tensas e pouco amistosas. O inverno da consistência a narrativa de um ambiente opressor, que por sua vez cairá sobre Ree quando ela sai em busca de parcerias e apoio – “somos todos parentes”- e se depara com o imperativo dos pactos estabelecidos aos quais deve acatar.


Observamos também que Ree ao se destinar a cumprir sua sina também faz um retorno a si, constatando seu lugar e a inconsistência do outro, das garantias. Partindo de um pai alcoólatra e transgressor ela vai acessar as relações deste com o mundo e o lugar de sua mãe para este homem. É assustador ver os parentes encontrando soluções para ela e seus irmãos, ressaltando o lugar de objeto – dejeto. E é aí que, a meu ver, há um encontro com o real e que ela decide fazer, inventar e sustentar uma nova posição. Contudo, trata-se de uma adolescente, não podemos nos esquecer, há um ideal, uma crença e uma capacidade de se opor ao discurso do mestre que a ajuda subjetivamente a sustentar sua jornada (eu sou uma Dolly). Talvez seja sua obstinação – esse traço – que faça o tio paterno tentar ajudá-la, apesar de este estar envolvido na lógica transgressora e mafiosa.


É neste contexto que Ree de modo incansável e decidido sai em busca do pai, esteja ele vivo ou morto. A única maneira de salvar sua família da tragédia é acessar sua origem, a realidade a sua volta, traduzida na brutalidade das relações e no machismo (é curioso perceber como em todas as casas quem recebe Ree é uma mulher. Em uma delas é questionada: “você não tem um homem para cuidar disso?”). Em outra frente ela precisa suportar o familiar e instável tio paterno, Teardrop, que a ameaça, a oferece maconha e cocaína, mas também a salva da excessiva violência de um grupo de mulheres ligadas ao chefão do crime (“o erro dela pode cobrar de mim”). É deste percurso que Ree terá acesso a algum saber sobre seu pai e daí poder fazer um bom uso. Para além disso, a retomada da relação com esse tio possibilita um resgate do pai em outra condição, ou seja, daquele que tinha alegria na família.


O filme, em sua dureza, é entrecortado pelas emocionantes e doces cenas de Ree e seus irmãos, principalmente quando ela os prepara “para a vida” ou para se defenderem sozinhos (“tem um monte de coisas que terá que fazer com medo ou não”), bem como quando os ensina a caçar esquilos. A atriz, Jennifer Lawrence para realizar a personagem aprendeu a lutar, cortar lenha e, até mesmo, dissecar um esquilo.


O pai de Ree é marcante na trama, ele a conduz apesar de sua contundente ausência. Ao que parece uma função se cumpre, mesmo que às avessas. Embora Ree não esteja orientada por uma transmissão que a organize e a proteja, o ato do pai a coloca em marcha para a vida. Ela diz: “eu tenho tanta vergonha do meu pai.” Poderíamos pensar se estaria ela também a salvar o pai? O que podemos extrair é que sua saída será servir-se dele, mesmo morto. Interessante o fato de não ser mostrada a imagem de seu pai, nem sequer como lembrança, aumentando o mistério sobre esse pai.


Para Lacan o Nome-do-Pai é uma das formas do sintoma, um dos operadores suscetíveis de operar uma amarração dos registros real, simbólico e imaginário. Dito de outra maneira, “a função do pai que foi eminente, atualmente, se degradou à medida em que os constrangimentos naturais foram rompidos pelo discurso da ciência e, neste sentido, tal função passou a ser uma função que responde a um uso prático”, segundo Lacadée (2004). Assim, “prescindir do pai na condição de dele se servir“(Lacan 1976, 2005, pg 136), é a saída de Ree.


Ree não espera pelo pai vivo. É como morto que ele poderá se fazer presente. É esclarecedor como uma contingência traumática pode produzir um excesso diante ao próprio destino, esse buraco sem Outro que cada qual bordeja para ex-xistir. O pai, a busca de seu paradeiro, faz solução para a adolescente: servir para prescindir. O pai aparece, no final do filme, através das mãos. Temos as mãos do pai, Ree precisa dar provas sobre a morte do pai, ela apresenta suas mãos já separadas do corpo, é assim que este pai comparece. É com essa fiança que, enfim, Ree conclui sua incumbência.


Para Ree, em sua adolescência, a realidade que se apresenta também é insuportável. Sua condição inicial se mostra mortificada. Ree entra com seu corpo e com sua alma invernada, obscura, um tanto ausente. Diante da eminente perda dos bens Ree recorre à mãe, pede que ela lhe dê, pelo menos desta vez, uma orientação, mas não há resposta.


A psicanálise nos ensina que o sujeito se inscreve a partir de sua relação com a função fálica, do lado masculino ou feminino. Cada uma dessas posições envolve modalidades distintas de experimentação de gozo no corpo.


No que se refere ao feminino, Lacan situa que o sujeito é marcado por “algo a mais” que transborda e perturba, estabelecendo assim uma forma diferenciada de gozo: o gozo feminino. No filme, observamos que Ree não consegue traduzir em palavras o que lhe invade o corpo, traduzido em uma solidão radical. Por ter afinidade com a falta, não pondera sobre o limite, não havendo contorno possível.


Para Lacan é importante para a mulher aferrar-se ao Um fálico como forma de se localizar no mundo e tentar se defender das ameaças do gozo Outro. Talvez a questão, O que quer uma mulher? possa nos ajudar a entender a articulação entre o feminino, a adolescência e a psicanálise através do filme Inverno da Alma. A psicanálise nos orienta que a impossibilidade de localizar discursiva e identitariamente o que é a mulher tem a ver com a própria opacidade do gozo feminino, que não se limita a uma parte específica do corpo.


No Seminário 20, Lacan indica-nos que a existência da Mulher não pode ser atribuída a um conjunto, ao universal d’A mulher, sendo tal condição da ordem do impossível. Sua existência só é possível negando o universal de uma forma inédita e particular. Portanto, existe uma impossível reconciliação entre A mulher e uma mulher, só existe uma mulher, aquela que não tem medida comum e que, para existir em seu gozo singular, deve proceder a uma negação particularizada do universal. Parece que Ree, por outras vias, nos demonstra essa posição.


Essa dimensão singular que se manifesta na forma de uma posição mais digna, serve de resistência ao discurso capitalista e cientificista de nossa contemporaneidade. Não é isso que Ree nos propõe? O desafio reside, portanto em não deixar que a ortodoxia prevaleça, na qual o que conta é uma opinião considerada como verdade válida para todos. Lidamos, assim, com o delicado encontro entre a dimensão social e o tratamento singular que Ree dá a sua questão. Vir desse não lugar, seu ponto de partida, faz com que ela se apoie para construir seu lugar, uma invenção, permitindo escrever uma história diferente e fazer um laço singular com sua feminilidade.


Na história ouvimos relatos de Ree sobre a mãe: “minha mãe é doente e sempre vai ser doente”, “foi exatamente fugindo dessa vida que ela se tornou quem se tornou”.


Mas há uma cena muito tocante e que permite entender a posição dessa mulher e como Ree é capturada. Em uma foto há um escrito da mãe: “somente me interessa manter o interesse desse homem por mim para sempre.” Neste sentido, ainda uma questão: diante da mãe, mortificada, sem desejo, enigmática, Ree se confronta com dificuldades sobre o que quer uma mulher? Há uma inconsistência que ela se vê a enfrentar para poder algo dizer, renunciando ao universal e a completude. Sua Alma Invernada pode finalmente florescer. Na última cena, em frente à casa agora reconquistada, Ree expressa um semblante sereno e, como uma adolescente, diz aos irmãos que ficaria perdida sem o peso deles nas suas costas, é com eles que ficará. É sua parceria, um modo de não enlouquecer. Ou ainda, é o amor que faz sua posição invernada condescender ao desejo, à primavera.


Debra Granik é uma produtora e diretora americana de filmes independentes. Debra, em seus filmes, utiliza de modo expressivo o inverno como a marca do impossível de suportar e do necessário a enfrentar. Outro ponto comum em sua obra é o consumo de drogas como modo de alívio, mas também baliza sua trajetória cinematográfica a constante da tentativa de seus personagens em reconstruir, em encontrar outro destino, sempre as voltas com a invenção.

 

Texto de apresentação da sessão comentada de "Inverno da Alma", parte integrante do programa Cinema e Psicanálise, exibida em 11 de março de 2022.


Mônica Campos Silva é psicanalista e membro da EBP/AMP.

 

Referências bibliográficas:

LACADÉE P. O uso do nome do pai: a ferramenta do pai e a prática analítica. Curinga, 23, 55 – 70.

LACAN, J. (1985). O seminário, livro 20: mais ainda, 1972-1973. Rio de Janeiro, RJ: Zahar

LACAN, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma, 1975-1973. Rio de Janeiro, RJ: Zahar

MILLER, J-A. (2015). Em direção à adolescência. Minas com Lacan. Recuperado de https:ly/2JHEI5M

STEVENS, A. (2004). Adolescência como sintoma da puberdade. Curinga, 20, 27-39.

/A mulher na atualidade: ressonâncias na EBP (inédito)





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