por José Ricardo Miranda Júnior
Preambulo
A praga das pragas…
Corpo que devora para existir.
Buraco vazio no estômago
Corpo: Geografia sem esperança
Mente que não ama
Não pensa
Não pode amar
Existe para devorar
Espaço corpóreo vivo e morto:
assustado
necrosado
monstruoso em seu desespero
de se manter de pé.
Pelo medo do outro, sustentado,
acuado
desesperançado
despedaçando e despedaçado.
Não há luz possível em seu encalço.
Mojica e a “praga das pragas”
Hoje está passando um filme de terror
Na sessão das dez, um filme de terror
Tenho os olhos muito atentos
E os ouvidos bem abertos
Quem sair de casa agora
Deixe os filhos com os vizinhos
Dentro da folia, um filme de terror
Dura um ano inteiro, o filme de terror
E na rua, um sacrifício
No pescoço um crucifixo
Quem ousar sair de casa
Passe a tranca e feche o trinco
No chão do cinema Império da Tijuca
O cemitério do Caju
Cemitério do Caju
O meu sangue jorra e borra de terror
Com quem dança e ama agora o meu amor?
Bruxas, medos e suspiros
Dentes, pelos e vampiros
Quem ousar deixar de lado
Abra os olhos com os vizinhos.[1]
1. Mojica e os fantasmas
Qual é o fascínio de José Mojica Marins? O que essa figura tem a dizer do universo brasileiro, de seu caos e paixão? Sua trajetória se confunde com a do nosso cinema, sua história e seus percalços. Cinema como espetáculo popular, cinema transgressor, cinema experimental e a pornografia, tudo coexiste em seus filmes. A chave para a compreensão desta figura peculiar talvez seja sua constante recusa... Uma recusa profunda, apaixonada, autodestrutiva, anti-erudita, e profundamente eloquente. Um recusa à conformidade.
Mesmo em seus (muitos) momentos showman, Mojica entendia e convergia com clareza um certo rancor de classe, uma raiva multidirecionada, uma forma de cinema que abraçava simultaneamente e indistintamente a escatologia e um olhar romântico do mundo. Era também destemido como cineasta – seu cinema era o perfeito estudo do limite das formas, entre o terror e a comédia, o sério e o ridículo, o belo e o abjeto. Mojica constantemente encontra uma forma em seu pretenso oposto.
De fato, o fascínio tardio com a obra de Mojica, em suas aparições televisivas e seu vínculo com o trash (estética da qual, de fato, partilha) podem vir a enganar o espectador, e destreinar o seu olhar. Esses muitas vezes são levados a esperar apenas o ridículo e o absurdo de seus filmes [2], distanciando-se da absoluta sinceridade e poética que o diretor consegue imprimir à sua obra. Essa é tão plural quanto complexa e apaga os limites entre “bom” e “ruim”, “belo” e “feio”. Essas definições são secundárias nesse cinema, entendendo que
O natural é tão falso como o falso. Somente o arqui-falso é realmente real. Estou falando de José Mojica Marins, cineasta do excesso e do crime, que conseguiu fazer duas fitas de terror em São Paulo, criou um clube, uma revista em quadrinhos, foi romancista, mágico e ator de fotonovelas. Dificilmente alguém no Brasil conseguirá o que ele está conseguindo longe de todos, sem cultura e sem dinheiro.
(FERREIRA, p.81)
Nesta longa e plural trajetória temos diversos projetos inacabados, irrealizados, perdidos, desaparecidos e destruídos. Entre esses “espectros” de sua obra, pelo menos até recentemente, estava A praga (Idem, 1980, Brasil), dirigido por José Mojica Marins e escrito por um de seus parceiros centrais – Rubens Francisco Luchetti. Trata-se de uma exceção dentro do cinema brasileiro, primeiro porque foi, de fato, reencontrado e o caso de sua restauração é no mínimo curioso, tendo gerado o documentário A última praga de Mojica (Idem, 2021, Brasil). O processo de restauro é também (e talvez, primordialmente) um reconstrução, com cenas filmadas, dublagem refeita à partir de leitura labial, montagem feita à partir dos registros em super 8 e das novas cenas. Ou seja, temos um novo filme, à partir de um que nunca seria visto.
E eis que se revela nessa reconstrução do filme de “A praga” (realizado em um dos momentos mais complexos da carreira de Mojica) uma obra que parece rimar com o Brasil do presente... que fala dele com eloquência impar.
Talvez seja relevante esclarecer que escrevo este texto em julho de 2022, a poucos meses das próximas eleições no Brasil. Tento concatenar as ideias para torná-las palavras. Nesse sentido, o impacto de A praga é difícil descrever… não por ter sido particularmente “bom” (seja lá qual for o valor deste adjetivo), mas principalmente por espelhar o mundo em que estamos vivendo. Eis um filme que calou fundo em mim.
O Brasil que temos vivenciado nos últimos anos, tem sido assustador. Trata-se de um momento em que testemunhamos o fortalecimento de fantasmas que tem assombrado este país desde sua “fundação”. Tema que sempre foi explorado na obra de Mojica. Os rompantes autoritários e a indiferença em relação a existência do outro nunca foram mais óbvios para alguém de minha geração do que durante esse período histórico/político. O filme se revelou para mim como uma leitura de mundo por uma figura que foi constantemente assombrado pelos horrores da ditadura e da perseguição política e artística.
2. Assombrações e monstros no gótico e o Brasil
O universo cinematográfico do gótico sempre foi marcado por maldições, monstros, fantasmas, espaços assombrados por memórias e imagens. Boa parte do imaginário do gótico no cinema é pautado por uma geografia que explicita a decadência do “monstro” e sua posição social como alguém mais abastado se alimentando do proletariado. Isso nunca foi tão claro como no caso de Drácula (de quem Mojica emprestou parte de seu figurino, a capa) – um conde decadente que se alimenta de trabalhadores dos vilarejos nos arredores e assim sustenta sua existência. Raramente no gótico, o monstro é uma figura que vem do mesmo universo de suas vítimas. Ele sempre é distanciado ou se distancia por uma cisão essencial, geralmente de classe (basta ter em mente a geografia desses filmes: o castelo no alto de uma montanha e os vilarejos bem abaixo). O vampiro se sustenta do sangue desses, ou seja, é mantido pelos aldeões, trabalhadores amedrontados pelo que eles não entendem.
O personagem mais marcante de Mojica e que, em certa extensão, inaugura seu universo de horrores, é sem dúvidas, Zé do Caixão. E é uma criação que advém do gótico, mas no universo interiorano brasileiro. O personagem de Mojica existe no mesmo universo de suas vítimas, mas se distancia delas colocando-se em constante dissonância com o universo que habita, “Mojica elaborou uma série de soluções visuais eficientíssimas para demonstrar a distancia cultural, física, financeira, filosófica e espiritual que separa Zé do Caixão do povo (ou seja, do público)” (Barcinski, p.124). Assim, Zé do Caixão tem muito em comum com o mostro do gótico – ele se alimenta das figuras que despreza, e se torna a figura que seus conterrâneos tanto temem, entendendo e assimilando seus valores em sua forma negativa. Ou seja, seu poder advém da capacidade de se tornar o “bicho-papão” do imaginário interiorano.
O ódio deste personagem em relação aos valores que o circundam o tornam uma figura de exceção, mas também de inclusão... Ele entende que ao jogar o “jogo do povo” e o transgredir em encenações profanas de confronto, ele consegue poder. Tampouco é um personagem honesto, sempre que atende aos seus interesses ele mente descaradamente. Ele faz o jogo da massa para dominá-la, controla-la, ameaça-la... mantê-la sobre seu jugo. Assim, é um personagem de viés totalitário, seu jogo é sobre poder e controle, usando a mentalidade popular contra ela. Atacando a crendice e os temores, os monopoliza e utiliza contra seus “aldeões”. Novamente, temos uma grande reflexão sobre os meandros do poder político em uma (não estudada) reflexão sobre a conquista e manutenção do poder por figuras cínicas e violentas.
Ao mesmo tempo, e eis a maravilhosa contradição do personagem e cinema de Mojica, o algoz é destruído pelos fantasmas de suas vítimas. Eis a força da memória contra monstros déspotas. Em toda sua torpeza e psicopatia as imagens perversas criadas pela suas ações são retomadas e se manifestam como força antagônica às ações e planos futuros da torpe figura de Zé do Caixão.
Existe no universo de Mojica uma força opressora, visível ou invisível interna e/ou externa aos personagens que controlam seus rumos, uma força que se impõe aos outros, ao mundo dos vivos para que seja feita a sua vontade. Muitas vezes proclamando seus desejos de poder, como os possuídos de Exorcismo negro (idem, 1974, Brasil, dir. José Mojica Marins) gritando em tom de ameaça: “-Eu... sou... mais forte! Você não vai me impedir de eu ter o que eu quero!“. Eis o desafio deste cinema, confrontar um mundo violento de desejos, olhar os déspotas frontalmente e revelar suas verdadeiras identidades e fragilidades, encontrar a figura atrás da cortina. Em outras palavras, encontrar verdade em um contexto em que essa foi obliterada, anulada pelo status quo. Como encontrar coragem para a sinceridade em um cinema pautado por moralismo e mentira?
Seus filmes são subversivos, chocam constantemente valores e formas. Sua obra cinematográfica, como os quadrinhos que a inspiraram, são contos morais, formatados por meio do que se entende como imoral. É pela exploração do sexo, violência, do aberrante e das perversões que se desenham contos e reflexões sobre o estado das coisas. São contos sobre os monstros sempre à espreita, constantemente querendo vir à tona. A entender - os desejos e maquinações que sempre ameaçam a nossa existência. O desejo de domínio do outro, a intolerância religiosa, o machismo... Eis os fantasmas que assombram o universo de José Mojica Marins.
Não se pode esquecer o caráter de fascínio que o cinema de Mojica tem com o corpo, a materialidade das coisas no mundo. Um corpo que se transforma, se converte, em algo não mais reconhecível, que se coisifica, eis os elementos gore do cinema de Mojica. O fim das formas reconhecíveis. Encontramos também um fascínio com esses corpos que amam, se movimentam e morrem. A cena final de À meia noite levarei a sua alma (idem, 1964, Brasil) revela isso com clareza – o corpo de Zé do Caixão desgastado esvaziado de sua potência critica e de movimento, se transforma em uma imagem, olhos quase fora de suas órbitas, como se o corpo e os olhos não dessem conta ter sido confrontados com as imagens do mundo, morto pelo encontro com imagens que negam as crenças desse sobre a realidade. O corpo transformado e destruído de dentro para fora.
3. O corpo e a praga
Eis o corpo, um corpo qualquer, corpo geográfico, corpo humano, corpo político. Enfim, um espaço poético de representação no qual forças antagônicas são postas a trabalhar. Eis o corpo de Juvenal, o personagem central do filme A praga, uma figura que como vários outros personagens de Mojica, está em confronto com o universo do popular – o universo da fé, das crendices, dos afetos externos ao mundo. E se posiciona contra eles em aberto antagonismo.
Esse corpo encontra outro corpo, o corpo de Marina, esses corpos se amam em cenas de sexo que carregam em si elementos da pornochanchada, e do pornô, revelando o fascínio do encontro dos corpos: pele, pelos, línguas em um universo de texturas: liso, áspero, rugoso. Esse encontro revela a materialidade deste afeto. E, porfim, temos o encontro com o corpo de uma bruxa... uma vez vivo e nos outros morta e fantasmagórica. Esses encontros são sempre sobre o embate, o confronto de corpos sempre à distância um em relação ao outro. A bruxa incomodada com o desdém de Juvenal recita palavras que o infectam, infectam seu íntimo, e transformam seu corpo... de dentro para fora nasce a praga que dá título ao filme.
O corpo de Juvenal performa, se transforma, se abre, se revela em delírios [3]. A praga diz respeito ao conflito do corpo com o próprio corpo e com a mente de Juvenal, se tornam o cerne da dramaturgia do filme. O corpo se retorce, sua, se abre para o mundo e revela sua perversão essencial – eis o momento em que ele se torna perigoso para outros. A ferida que se abre em seu ventre, deve ser alimentada com carne crua apenas assim se aplaca a dor. Ele se torna um devorador, ele deve alimentar o seu vazio para manter sua existência, em desespero, esse vórtice de carne se vira contra aquela que o corpo amou, que permaneceu, que lutou para sustentar o corpo que padece.
Seria esse um corpo político?
Eis o fascínio do cinema de José Mojica – sua clareza quase premonitória sobre os caminhos fabulares e absurdos desse país tropical... Eis Zé do Caixão como monstro proferindo sua voz contra elementos que formam essa geografia e sua pluralidade. Os “monstros morais” brasileiros criados por Mojica são escravo de sua obsessão e por elas destruídos. Eis o universo dos fantasmas políticos brasileiros tendo as suas contradições diagnosticadas e questionadas por uma voz inquieta e apaixonada.
Que tenhamos a mesma coragem de confrontar o que nos assusta e ameaça.
[1] SAMPAIO, Sergio. Filme de terror. Rio de Janeiro: Phogram Studios. 1973. LP (3:36)
[2] Não fazendo jus ao trash, muitas vezes confundido com a “estética do trash”, essa sim uma questão mais problemática que merece maior aprofundamento e um sistemático estudo.
[3] Em imagens que preconizam o imaginário de Cronenberg em Videodrome (Videodrome – a síndrome do vídeo, Canadá, 1983)
Referências bibliográficas
BARCINSKI, André. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão/André Barcinski e Ivan Finotti – São Paulo: Ed. 34, 1998, 448p.
FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção/Jairo Ferreira. [3ª edição]. Rio de janeiro: Beco do Azougue, 2016. 332 páginas.
SAMPAIO, Sergio. Filme de terror. Rio de Janeiro: Phogram Studios. 1973. LP (3:36)
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