por Dácia Ibiapina
“A falta que me faz” é um filme documentário dirigido pela cineasta mineira Marília Rocha. As protagonistas são meninas adolescentes de uma comunidade negra do distrito de Curralinho, Diamantina, Minas Gerais. Do ponto de vista da proximidade com a natureza, as adolescente vivem em um paraíso: região de serra com muita água e muita mata nativa, na Serra do Espinhaço. No decorrer do filme as meninas dizem que não pretendem migrar para grandes cidades. Diz uma delas: “Morar fora, eu não moro nem a porrete. Sair de Curralinho também não saio. Prefiro ficar em casa.”
O filme constrói os modos de vida e as subjetividades das meninas a partir de uma relação próxima entre a equipe do filme e as protagonistas. É curioso que os integrantes da equipe, apesar dessa proximidade, nunca sejam filmados. Sabe-se deles apenas pela voz, geralmente da diretora. Tem um momento muito interessante de diálogo de uma menina grávida com o técnico de som. Ela pergunta se ele é casado ou amigado. Você sabe qual a diferença entre ser casado e ser amigado? Quem assistir ao filme vai poder descobrir.
As meninas são amigas e as vezes vivenciam conflitos por causa de namorados e de amizades. Elas andam pela serra, se banham nas águas que descem lindamente da serra e escalam rochas enquanto conversam entre si e com a equipe do filme. Elas são vaidosas. Gostam de se arrumar, de cantar, de dançar e de namorar. Elas também fazem atividades domésticas tais como: buscar lenha, cozinhar, lavar roupas e panelas na gruta perto das casas. Nos finais de semana se arrumam e saem para dançar e namorar. Gostam de funk, forró e música romântica.
A gravidez na adolescência tem forte presença no filme, embora, nas entrevistas, a diretora não aborde o tema do uso de camisinhas e de outros métodos anticoncepcionais. Também não se pergunta sobre freqüentar escolas ou postos de saúde. Nota-se que as meninas sabem ler e escrever. Elas escrevem cartas, poemas e escrevem ou desenham no próprio corpo (tatuagens caseiras). Tem uma seqüência com essas tatuagens, no começo do filme, que despertou a atenção da crítica e dos espectadores.
A vida dentro das casas também é alcançada pelo filme. As meninas são filmadas dançando funk na sala de casa sob o olhar curioso de uma mulher adulta, talvez a mãe de uma menina. Longas seqüências acontecem no quarto: as meninas alisam os cabelos com chapinha, se maquiam e se vestem enquanto conversam sobre amor e relacionamentos. São conversas muito interessantes, como por exemplo, uma sobre se as meninas pretendem se casar. Uma delas argumenta que casar é ruim porque o homem vai cortar muita coisa da mulher: bebida, não pode usar roupa curta, só pode dançar com ele, não pode sair com as amigas, e tem que cuidar do marido e dos bebês. Diz uma menina: “Arrumar marido fode com a vida da gente. Arrumar filho, piorou.”
Os homens estão ausentes no filme, talvez por opção da direção e roteiro. Alguns aparecem no forró e uns meninos aparecem jogando futebol na rua. É uma região de garimpo e se pode supor que os homens passem longas temporadas nos garimpos. Por meio das conversas das meninas, ficamos sabendo que alguns jovens do sexo masculino vão trabalhar e/ou estudar nas cidades maiores. Alguns retornam em finais de semana.
Temas como suicídio, envelhecimento e morte são tratados; ora com um certo humor negro, ora com tristeza e naturalidade. Uma menina diz: “Enquanto eu tiver nova tá bom. Só não quero ficar ‘andando na manguara’, com 60, capinando...” A diretora pergunta sobre a morte do pai de uma menina. Ela conta: “Ele foi para o garimpo. O barbeiro picou ele. Ficou doente um tempão. A doença pegou e avançou. Levou para o hospital. Morreu.” A menina diz que a mãe não chorou, xingou. Ela também diz: “Chorar... chorar... O que adianta chorar, né Marília? O que passou, passou.” Sobre o suicídio, ficamos sabendo que um homem se enforcou por causa da amante. Que outro se enforcou porque estuprou a enteada. “Pesou na consciência.”, diz uma menina. Segundo elas, em Diamantina, o modo de se suicidar é “enforcar com corda.”
“A falta que me faz” se mantém atual e lindo. Destaco a beleza dos cenários, das protagonistas e da fotografia de Ivo Lopes e Alexandre Baxter. Quanto à trilha sonora, estranho a música que acompanha a seqüência final: porque se despedir com uma música romântica em Francês (Je Revê de Toi, Arthur H)?
Kommentare